Humildade constitucional: o conceito que o STF ainda não “descobriu” na Constituição, e o retorno à legalidade

Humildade constitucional: o conceito que o STF ainda não “descobriu” na Constituição, e o retorno à legalidade

João Costa Neto

Professor Substituto da Universidade de Brasília (UnB),

pela qual é doutorando e mestre em Direito, Estado e Constituição.

 

A Constituição não contém a resposta para tudo. Seus dispositivos são relativamente vagos. O constituinte brasileiro de 1988, como os constituintes de vários lugares do mundo, queria tudo: buscou unir os bônus, mas não queria suportar os ônus.

É normal que todos concordem que se deve respeitar a liberdade de expressão. Entretanto, quando surgem casos acerca da aplicação desse direito fundamental, as divergências brotam imediata e instantaneamente. Quando é que a liberdade de expressão cede à proteção da privacidade e vice-versa?

Praticamente todos acreditam que a liberdade religiosa deve ser garantida, mas não há qualquer consenso acerca do seu âmbito de proteção ou acerca dos limites que ela pode legitimamente sofrer. Um membro da religião rastafári, por exemplo, pode ser condenado por usar maconha durante práticas religiosas? Casos análogos envolvendo esse tema foram decididos de maneira diferente pela Suprema Corte dos EUA[1] e pela Corte Constitucional da África do Sul[2]. Há notícia de um caso semelhante no Brasil.[3]

Os termos explícitos da Constituição criam, com frequência, conflitos entre dois ou mais valores que são igualmente constitucionais. Esses conflitos são comuns e não são resolvidos pela própria Constituição. Não há dúvida de que, em conflitos desse tipo, uma escolha terá que ser feita entre diferentes possibilidades, igualmente admitidas pelo texto.

Estar-se-á diante de um problema, justamente porque o constituinte brasileiro desejou, como os povos em geral desejam, de tudo um pouco. Ele quis adotar o rol mais amplo e belo de direitos e garantias, mas sem especificar, em pormenor, como eles deveriam ser aplicados.

Portanto, em casos de colisão de direitos fundamentais, é necessário ter deferência para com o parlamento. Cabe a ele efetuar o sopesamento entre os diversos interesses em questão. Quando há desacordo moral e incerteza quanto ao caminho certo a trilhar, a democracia é o caminho precípuo que os Estados de Direito adotaram para solucionar controvérsias.

É por isso que, em vez de se falar em neoconstitucionalismo ou estultices panprincipiológicas semelhantes, deve promover-se um retorno à lei. Leis são planos.[4] Elas permitem a coexistência de diferentes projetos de vida, evitam frustrações, geram previsibilidade. Justamente por serem planos, as leis não devem ser cumpridas aconteça o que acontecer. Elas são, por conseguinte, “derrotáveis” (defeasible)[5], mas só em casos de inequívoca alteração do cenário fático em função do qual haviam sido adotadas.

Seguir as regras, ainda que não se concorde com o conteúdo delas, evita injustiças e racionaliza, a longo prazo, o processo de tomada de decisões. Em virtude disso, fala-se que regras são razões excludentes (exclusionary reasons).[6] Se, a cada nova aplicação de uma regra, fosse feito todo um debate acerca dos seus méritos morais ou sociais, não haveria sequer sentido em criá-la. Afinal, as regras fixam roteiros ou planos, precisamente para impedir que, a cada nova situação, haja uma nova deliberação sobre qual o curso certo a seguir. Ser panprincipiologista é ser irracional!

Em alguma medida – e isso deve ser entendido cum grano salis –, a Constituição deve, sim, ser conforme a lei.[7] Não se nega que a Constituição seja hierarquicamente superior às leis, mas a exata concretização de vários de seus valores depende de lei. E o conteúdo possível dessas leis é, em grande parte, indefinido. Portanto, é necessário ter cautela ao interpretar os dispositivos constitucionais. A Constituição não torna as leis ou os códigos supérfluos. Não é porque a Constituição possui um capítulo que garante a proteção à família, que ela contém a resposta para todos os problemas de direito de família (ou das famílias).

Diversos valores constitucionais só se aperfeiçoam por meio da lei e a Constituição respeita isso, porque não foi feita para exaurir todas as dúvidas e responder todas as perguntas. Leis e Constituição devem seguir o famoso brocardo tão bem expressado nas palavras de um famoso filósofo pré-socrático: ado-a-ado… cada um no seu quadrado.

A Constituição não é mais do que a moldura de um quadro. Ela fixa e delineia limites; estabelece uma área do que é admissível. Dentro da moldura, o legislador ordinário é livre para fazer escolhas por meio do processo democrático. Há algumas coisas que a Constituição proíbe e outras que ela exige. Para todas as outras, não há uma resposta constitucional pré-determinada.[8] Dentro da moldura, qualquer coisa vale… anything goes. Caberá ao parlamento adotar a solução que julgar adequada. A área interna da moldura corresponde à margem de ação (Spielraum), margem de escolha ou margem de apreciação do legislador, também chamada de zona de proporcionalidade.[9]

A concordância prática entre valores de estatura constitucional deve ser feita, em regra, por meio de lei aprovada pelo parlamento. É um contrassenso afirmar que cabe sempre ao juiz realizar sopesamento ou ponderação. Essa missão é do Congresso Nacional!

Quando a lei fixa prazos prescricionais, isso é fruto de um sopesamento que podemos chamar de definitório. Quer-se dizer com isso que a lei pacifica dissensos, harmoniza pretensões, garante expectativas. Ela resolve não apenas um caso concreto, mas inúmeros outros que surgiram ou irão surgir, com base na fixação de uma preferência condicionada[10] (sobre o tema, ler aqui, aqui e aqui). Primeiramente, o parlamento avalia, de um lado, o peso da segurança jurídica; de outro, o da prestação jurisdicional apropriada. Ao final, ele fixa o prazo prescricional que entende devido.

Quais as regras de trânsito? O que deve ser crime no país? Quais as regras jurídicas que devem ser observadas na celebração de um contrato de compra e venda? Todas essas perguntas são respondidas por meio de lei, ou seja, por meio de ato normativo infraconstitucional. A regra em uma democracia é que a maioria decida, por meio de lei, todo tipo de problema que surgir. Isso significa que a maioria sempre tem uma ampla margem de apreciação e um vasto poder de escolha e disposição sobre essas questões.

É errado abusar da linguagem abrangente da Constituição para tentar dar uma resposta para tudo. Quase tudo está, de uma forma ou de outra, na Constituição; e o que não está pode ser “interpretativamente colocado” dentro dela com facilidade. Portanto, se não houver auto-contenção por parte do STF, é fácil cair na arrogante ilusão de que a Constituição tem a resposta para tudo.

Luís Roberto Barroso, defensor do assim chamado neoconstitucionalismo, afirmou, em mais de uma palestra (clique aqui), que os professores de Direito Constitucional, atualmente, tornam-se especialistas em todas as matérias. No seu caso, ele mencionou com orgulho o fato de ter atuado em processos como o da permissão de pesquisas com células-tronco embrionárias e o da extradição do ex-militante da esquerda italiana Cesare Battisti diante do STF. O novo Ministro do STF disse que:

 

“Tornei-me especialista em fertilização in vitro, nos anos de chumbo da Itália e tantas outras questões. Tanto que incluí no meu cartão: ‘Jogo búzios, prevejo o futuro e trago a pessoa amada em três dias’.”

 

Parece claro que a arrogância de alguns constitucionalistas impede-os de enxergar que a legislação infraconstitucional é que deve solucionar a maioria dos conflitos entre valores constitucionais, inclusive entre direitos fundamentais. A lei também efetua “concordância prática”, o que o próprio Konrad Hesse, artífice dessa expressão, já admitia.[11]

É salutar, em um estado que se diz democrático, que questões essenciais sejam decididas pelo Parlamento. Entender a Constituição como ordem-moldura, entre a demasia e a insuficiência, entre o Übermassverbot e o Untermassverbot, significa ser deferente ao parlamento, sem anular a superioridade hierárquica da CF em face das demais normas constitucionais.

O fruto da ponderação levada a efeito pelo legislador é a lei. A lei é o principal instrumento do sopesamento definitório. Já os casos concretos são o meio adotado pelo sopesamento casuístico ou indefinitório. O sopesamento definitório é certamente preferível ao de tipo casuístico ou indefinitório (sobre o abuso dos princípios e seu caráter autoritário clique aqui para ler artigo escrito nesta coluna por Marcelo Neves).[12]

Nesse contexto, pelo menos três fatores[13] devem ser levados em conta pelo STF ao decidir.

Em primeiro lugar, o STF deve compreender genuinamente que a Constituição simplesmente não proíbe, nem exige inúmeras coisas (discricionariedade estrutural). Nesses casos, cabe ao legislador exercer seu juízo decisório.

Em segundo lugar, o STF deve ter deferência para com os fatos legislativos e prognósticos que o legislador toma por verdadeiros (discricionariedade epistêmica de tipo empírico). Se se exigisse absoluta certeza quanto às premissas fáticas e empíricas de que parte o legislador, todas as limitações legais a interesses constitucionais seriam inconstitucionais.

Em terceiro lugar, quando não houver muita clareza quanto ao que a Constituição proíbe ou deixa de proibir (discricionariedade epistêmica de tipo normativo), a dúvida favorece o legislador. A incerteza cognitiva quanto aos limites da discricionariedade estrutural privilegia a atividade legislativa. Na incerteza de até aonde vão os limites da moldura, a decisão é do parlamento.

O STF é praticamente um mágico, capaz de fazer brotar coelhos de sua cartola – também conhecida como Constituição Federal. As interpretações do STF já deram todo tipo de frutos. A Corte já mudou o tipo de ação penal em um crime (ADI 4424; ADC 19); já fez interpretação conforme a Constituição de um artigo que era praticamente idêntico a um artigo da própria Constituição (ADI 4277; ADPF 132); acabou com o nepotismo e disse o grau exato de parentesco admitido na nomeação de familiares (Súmula Vinculante n. 13); já declarou inúmeras emendas constitucionais inconstitucionais – algo que pouquíssimas Cortes Constitucionais fazem no mundo[14] –; “descobriu” inúmeros princípios implícitos na Constituição, como proporcionalidade, razoabilidade, dentre outros; etc., etc.

Chegou a hora de o STF descobrir um novo princípio constitucional: a humildade constitucional. É preciso deixar de lado a arrogância de quem acha que pode resolver todos os problemas da sociedade. Os Ministros do STF não são vates, nem profetas. Eles não prenunciam o futuro com base nas tripas de bode e, portanto, não deveriam agir como um oráculo constitucional.

Há algumas coisas que a Constituição proíbe e outras que ela exige. Para todas as outras, não há uma resposta pré-fixada. A Constituição é uma moldura. Ter consciência disso é ter humildade constitucional.


[1] Gonzáles v O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, 544 US 973 (2005).

[2] Prince v President of the Law Society of the Cape of Good Hope, (CCT36/00) [2002] ZACC 1; 2002 (2) SA 794.

[3] Monteiro, André; Sant’Anna, Emílio. “Criador da 1ª igreja rastafári é condenado por plantar maconha.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 maio 2013.

[4] cf. SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011.

[5] DUARTE D’ALMEIDA, Luís. “A Proof-Based Account of Legal Exceptions”, Oxford Journal of Legal Studies, vol. 33, 2013, pp. 133-168.

[6] cf., e.g., RAZ, Joseph. Between Authority and Interpretation. Oxford: Oxford University Press, 2009; RAZ, Joseph. The Authority of Law. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2009.

[7] LEISNER, Walter. Von der Verfassungsmäßigkeit der Gesetze zur Gesetzmäßigkeit der Verfassung. Tübingen: Mohr Siebeck, 1964.

[8] Acerca da Constituição como ordem-moldura, cf., e.g., BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. “Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik”, in Staat, Verfassung, Demokratie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991; ALEXY, Robert. Verfassungsrecht und einfaches Recht (VVDStRL 61). Berlin: Walter de Gruyter, 2002; AFONSO DA SILVA, Virgílio. Grundrechte und gesetzgeberische Spielraum. Nomos, Baden-Baden: Nomos, 2003.

[9] Barak, Aharon. Proportionality: Constitutional Rights and their Limitations (Cambridge Studies in Constitutional Law). Cambridge: Cambridge University Press, 2012. pp. 379ss.

[10] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. pp. 79 ss.

[11] cf. o capítulo sobre concordância prática em HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C.F. Müller, 1999.

[12] A respeito do sopesamento definitório, cf., e.g., NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

[13] cf. ALEXY, Robert. Verfassungsrecht und einfaches Recht (VVDStRL 61). Berlin: Walter de Gruyter, 2002; “Posfácio” à Teoria dos Direitos Fundamentais, traduzida por Virgílio Afonso da Silva e publicada, em São Paulo, pela ed. Malheiros.

[14] cf. BARAK, Aharon. “Unconstitutional Constitutional Amendments.” Israel Law Review, vol. 44 (3), pp. 321-341

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3 Comentários
  1. Ivan Coelho

    julho 16, 2013

    A crítica é válida. Mas qual seria a solução em uma norma constitucionais de eficácia limitada, em caso concreto levado ao judiciário? A solução, como sempre, o judiciário “cria lei”, por seus entendimentos. É a melhor solução? Se não, o que fazer no caso da omissão legislativa?
    São fatos para reflexão.

  2. Fred Vilar

    julho 16, 2013

    Respeito toda a deferência feita ao Parlamento, mas gosto de lembrar que a Democracia como “caminho precípuo que os Estados de Direito adotaram para solucionar controvérsias” também é possível de alcançar concretização por meio de sentenças judiciais, isto é, o Direito Processual Civil também é caminho de realização da Democracia, por meio de uma outra função estatal, qual seja a jurisdicional. Não vejo conflito algum entre a criação da lei – pela função legislativa – e sua interpretação ao caso único levada a efeito (espera-se o efeito, por isso existe alguém que “o diga”) pela função jurisdicional. Afora esse realce, agradeço a oportunidade da leitura.

  3. Fred Vilar

    julho 16, 2013

    Pena que acontece esse tipo de previsão de brechas na produção legislativa: Brecha na Lei da Ficha Limpa permite diplomação do prefeito de Paulínia (disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jul-15/brecha-lei-ficha-limpa-permite-diplomacao-prefeito-paulinia acesso em: 16 jul 2013)