Valores e princípios: uma distinção por ser feita no constitucionalismo brasileiro

É comum ler nas obras dos constitucionalistas brasileiros a importância dos valores da comunidade e de se respeitar o ethos brasileiro na hora de interpretar a constituição. A estrutura dos valores brasileiros, segundo essa leitura da Constituição, imporia limites à interpretação e determinaria parcialmente como devemos ler o texto constitucional. Mas será essa leitura adequada ao constitucionalismo contemporâneo? Acredito que não.

Constituição: uma carta de princípios, não de valores

Há uma premissa pouco dita, e muito assumida implicitamente, no discurso constitucional dominante no Brasil: a de que princípios constitucionais são valores. Em alguns casos, esse discurso é explícito, principalmente em tempos mais recentes, quando o Supremo Tribunal Federal passou a assumir a teoria de Robert Alexy como a sua teoria da interpretação dominante. Luis Roberto Barroso, em seu livro “Interpretação e Aplicação da Constituição”, por exemplo, nos diz que a interpretação da Constituição pode ser lida como interpretação de “bens, valores e normas”:

Imagine-se uma hipótese em que mais de uma norma possa incidir sobre um mesmo conjunto de fatos – várias premissas maiores para apenas uma premissa menor -, como no caso clássico da oposição entre liberdade de imprensa e de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à intimidade e à vida privada, de outro. Como se constata singelamente, as normas envolvidas tutelam valores distintos e apontam soluções diversas e contraditórias para a questão. (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 357)

Segundo essa lógica, um princípio constitucional é um valor. Essa posição, contudo, tem algumas implicações importantes para o constitucionalismo que se constrói a partir dela. Para compreender esse ponto, é importante remontar as origens teóricas do constitucionalismo ainda no século XVI. Entre os primeiros direitos delineados pela teoria liberal, que mais tarde fundamentariam teoricamente os direitos fundamentais previstos nas primeiras declarações de direitos, estava a liberdade religiosa. O primeiro contexto de reconhecimento político desse direito foi a Inglaterra dividida entre protestantes e católicos nos séculos XVI e XVII, onde se divisaram duas instituições básicas: a tolerância entre as diversas religiões e a imposição da separação entre Igreja e Estado. Não é por menos que as grandes obras sobre tolerância desse período são as Cartas sobre a tolerância, do filósofo inglês John Locke.

Essa solução fundou teoricamente o primeiro pressuposto improvável da teoria dos direitos fundamentais – a separação entre instituições públicas e valores individuais. Até então, toda a racionalidade institucional estava presa a uma unidade de valores que permeavam toda a comunidade. Com as guerras religiosas, tornou-se necessário gerir uma sociedade que não era mais marcada pela unidade de valores. Segundo a interpretação do filósofo norteamericano John Rawls, tornou-se necessário adotar uma distinção entre princípios e valores (ou, na terminologia rawlsiana, entre princípios de justiça e concepções de bem).

A distinção entre princípios e valores e reflexos para o constitucionalismo

Quando interpretamos a Constituição como uma carta de valores, assumimos o pressuposto de que há uma identidade de valores que permeia toda a sociedade brasileira, que é interpretada como uma comunidade única, estanque e solidificada em torno de uma identidade comum. Se sociologicamente essa é uma péssima descrição da sociedade, ao assumir esse postulado como pressuposto da interpretação jurídica, corremos o grave risco de solapar qualquer possibilidade de vivência fora daqueles valores. O que John Locke compreendeu parcialmente foi que a regência da vida pública necessita de princípios diferentes daqueles que organizam a vida religiosa dos cidadãos. Uma sociedade se constrói em torno de várias identidades religiosas parciais, que não se confundem com a vida normativa de todos. Quando não distinguimos entre valores e princípios, passamos a interpretar princípios como se valores fossem, e a impor valores parciais sobre todos, mesmo aqueles que não vivem conforme eles.

É precisamente por conta dessa distinção que podemos falar em direitos como liberdade religiosa, de expressão e de imprensa. Se utilizarmos valores para interpretar esses direitos, a própria finalidade deles será solapada. Se esses direitos estiverem em harmonia com os valores sociais, serão tolerados; em caso contrário, não. Mas é precisamente isso que esses direitos querem combater! Eles servem e se justificam justamente porque conferem liberdades individuais e coletivas para sustentar valores contrários aos da maioria!

A adoção de uma ou outra leitura traz reflexos práticos. Em 1995, um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em rede nacional de televisão, no dia dedicado à chamada “padroeira do Brasil”. E foi condenado pela prática de indução e incitação ao racismo e a preconceito de religião. A questão é: ele estava fazendo isso no exercício da fé dele, com o objetivo de exteriorizar como ela via a adoração de objetos religiosos. Mas, como atentou contra o sentimento da maioria católica, houve uma campanha por sua condenação, que efetivamente ocorreu – felizmente, a pena foi cumprida em liberdade. Mas a condenação ocorreu. Fosse um católico (ou uma outra denominação evangélica) falando sobre como religiões de matriz africana são “coisa do diabo” e chutando algum objeto de adoração daquela fé, dificilmente isso ocorreria, porque não atentaria contra os “valores da maioria”.

Em contraponto, menciono a decisão da Suprema Corte americana no caso Partido Nazista vs. Skokie, de 1977. No caso, o partido nazista norteamericano decidiu fazer uma passeata em Skokie, no Illinois. A adminsitração da cidade, que tinha uma comunidade judaica bastante atuante, tentou proibir a passeata, mas o partido nazista, defendida pela União pelas Liberdades Civis Americanas (conhecida por sua atuação na defesa de direitos fundamentais) decidiu recorrer à Suprema Corte, que entendeu pelo direito à liberdade de expressão. Ou seja, a Suprema Corte americana entendeu que, por mais odiosa que fosse a manifestação dos nazistas, eles tinham todo o direito de se expressar porque havia um princípio constitucional que autorizaria! No Brasil, a liberdade de expressão tem sido interpretada como valor – como bem mostra outro caso, em que o Poder Judiciário brasileiro proibiu o desfile de um carro alegórico de escola de samba que fazia alusão ao Holocausto. Vejam a diferença: nos Estados Unidos, foi permitida passeata de nazistas em uma cidade; aqui, o Judiciário proíbe a própria menção ao Holocausto, como se não fosse um fato histórico do qual – acredito – devemos nos lembrar para impedir que aconteça novamente!

Como coloca John Rawls, o constitucionalismo traz embutida uma prioridade entre princípios de justiça sobre valores. A lógica é distinta, ao contrário do que Alexy, Gilmar Mendes e Barroso dizem. E se não fosse distinta, o próprio constitucionalismo não faria sentido, porque a maior parte das liberdades fundamentais são direitos que só fazem sentido se autorizarem indivíduos/grupos a se oporem contra os valores da maioria. Como os dois casos ilustram, pode ser trágico fundi-los em uma única categoria ontológica. Afinal, o constitucionalismo não é uma religião da maioria, mas uma estrutura normativa que possibilita a todos exercerem seus valores livremente.

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