A Criméia entre outras batalhas: A proteção de civis como justificação para ações bélicas

 

As raízes e os frutos dos movimentos que culminaram na anexação da Criméia à Rússia após a queda do presidente ucraniano Viktor Yanukovich ainda são muito incertos. Apesar disto, tentarei analisar alguns deles, bem como colocar em perspectiva os motivos de Moscou.

A surpresa de muitos analistas não é injustificada. Pessoalmente, julgava que as ameaças relativas ao uso de força militar na Ucrânia não passavam de blefe. Não por a Rússia não ter capacidade bélica para tanto, mas pela constatação de que a Ucrânia, embora tenha aderido ao programa START I e eliminado armas nucleares outrora soviéticas, é um Estado que provavelmente poderia desenvolvê-las em curto espaço de tempo, embora nem os países da União Europeia e nem os EUA pareçam desejar isso. O fato de Ucrânia contar com o apoio da OTAN também me deixava cético em relação à concretização de uma anexação da Criméia.

No campo legal, vejo o Memorando de Budapeste, assinado em 1994 por Rússia, Grã-Bretanha, EUA e Ucrânia, em que se estabeleceu que a integridade territorial ucraniana seria garantida em troca de seu desarmamento nuclear, como a única fonte de possível violação do direito internacional no que toca a ação russa – alegações como “violação à constituição ucraniana” fazem muito pouco sentido.

A Rússia, ao contrário do que tentam fazer crer muitos analistas, sai fortalecida da situação, pelo menos do modo pelo qual ela foi desenvolvida até o momento. Manterá por algum tempo sua esfera de influência militar em relação aos países fronteiriços e àqueles um pouco mais distantes, como os do oriente médio. É verdade que perde um parceiro importantíssimo, a Ucrânia, assim como o apoio da rica União Europeia. Contudo, ambas também precisam de prestações russas. Como será, por exemplo, o papel desempenhado pela Gazprom, companhia russa de gás que abastece não apenas Ucrânia como também v.g. Alemanha e Itália, ainda é uma incógnita. A Ucrânia é altamente dependente das divisas desta empresa, que pode simplesmente bloquear os gasodutos que passam por seu território.

Outros países, ainda bestializados com o desenrolar dos fatos, tomam e tomarão medidas tão duras quanto inócuas para a mudança de comportamento de Putin: aplicarão sanções comerciais, essas mesmas que nunca fizeram nada a não ser causar imenso sofrimento à população do Estado afetado – a exceção, talvez, seja a África do Sul sob apartheid.

Bem, mas ao invés de tratar ainda mais de todos esses espinhosos assuntos, quero abordar a premissa que moveu e move a ação russa. A questão que prolifera nos discursos das autoridades deste membro permanente do Conselho de Segurança da ONU é a que toca a proteção de populações civis por parte de estados outros que não os quais em que se encontra a tal população a ser protegida.

Putin, ao anunciar a anexação da Criméia em 18 de março de 2014, lembrou da situação de Kosovo, uma República que à época declarou independência em relação à Iugoslávia e sofreu um ataque desse país, sendo depois defendida pela OTAN em ação não autorizada pelo Conselho de Segurança.

A estratégia de Putin é idêntica: o premiê russo afirmou que uma ação de Moscou seria tomada em caso de as novas autoridades ucranianas ameaçarem de algum modo a população civil daquele país, em especial a de etnia russa. Com o desenrolar da situação, acabou por julgar igualmente legítimas as aspirações de independência e autodeterminação criméicas.

A Criméia, ainda que se possa duvidar dos números oficiais do referendo de 16 de março de 2014, é uma parte da Ucrânia em que a maioria da população é de etnia russa, e Moscou tinha argumentos suficientes para sustentar uma possível ameaça a esta população em decorrência de um novo governo ucraniano que, por exemplo, havia banido a língua russa como oficial. Se exagera, Putin não erra ao dizer que há facções de extrema direita compondo aquela nova administração.

A menção ao amparo de civis desprotegidos é uma estratégia política inteligente e, segundo as expectativas compartilhadas por boa parte da sociedade mundial, irrefutável: como alguém poderia ser contrário à proteção de civis desarmados frente a um governo que dirige tiranicamente suas operações militares contra homens, crianças e mulheres? E quem poderia fazê-lo, senão um outro estado capaz de defender estes civis?

Gostaria, antes de Kosovo, lembrar-me do que ocorreu mais recentemente e com o apoio do Conselho de Segurança. Estamos agora em fevereiro de 2011. O tal mundo ocidental acompanha aparvalhado movimentos sociais de grande monta no norte da África. À imolação de um comerciante em Túnis sucedeu-se uma série de protestos por Tunísia, Egito e Líbia que culminaram, de uma forma ou de outra, em uma mudança de regime. Manifestantes de Bahrain, Yemen ou Arábia Saudita, estados coincidentemente alinhados com potências bélicas, não tiveram a mesma sorte.

Ao contrário do que foi experimentado por Tunísia e Egito, o Coronel Muammar Kadafi não saiu por vias pacíficas: foi necessária uma guerra contra seu governo capitaneada pela OTAN, uma ação autorizada pelo Conselho de Segurança.

O fundamento para esta ação foi a necessidade premente de proteção aos civis sob a roupagem do novo mote Responsabilidade de Proteger[1].

Incontáveis reportagens daquela época apresentavam Kadafi como um tirano sanguinário, um desses ditadores africanos mais ou menos iguais aos olhos dos que seguem as lides e os olhos da grande imprensa mundial. As acusações eram de que estava a ocorrer um massacre em Benghazi com o apoio de mercenários, inclusive com o recurso de sistemática violência sexual contra mulheres patrocinada pelo ditador.

O problema é que nem um relatório da ONU nem outro da Anistia Internacional acharam indícios à época de tais atrocidades.

Em verdade, relatórios de agências da ONU como FAO e UNESCO apresentavam a Líbia até 2011 como uma referência africana no que concerne os direitos sociais. A Líbia possuía então entre os estados africanos o segundo maior IDH, atrás apenas de Seychelles, um pequeno arquipélago.

Como se sabe, Kadafi não apenas foi apeado do poder como morto num evento filmado por celulares e espalhado pela internet.

Isto está longe de dizer que Kadafi não era, por exemplo, um ditador, nem que não tenha cometido diversos tipos de abusos condenáveis por diversos tratados internacionais. Nem quer dizer que não tenha agido com brutalidade contra os manifestantes de Benghazi, o que culminou com a morte de centenas deles. Isso os citados e outros relatórios mencionaram.

O que me interessa é como a menção ao extermínio de civis pôde movimentar diversos países e pessoas a apoiar uma guerra. Pode parecer óbvio, mas a menção a uma agenda oculta (hidden agenda) por parte de países militarmente poderosos não deve ser deixada de lado. Basta lembrar os falsos pretextos que culminaram na segunda guerra estadunidense contra o Iraque.

Volto à questão da Criméia.

Putin em seu discurso sobre a anexação da Criméia enfatizou os acontecimentos em Kosovo para argumentar que os EUA usam a “lei da pistola” quando não conseguem alicerçar suas ações no Conselho de Segurança da ONU. Como referido, há claras semelhanças: nos dois casos houve reivindicação de independência e falta de autorização por parte do Conselho de Segurança para ações de outros atores.

Todavia, a estratégia retórica russa é também muito semelhante à estadunidense de 2011 em relação à Líbia.

Putin lembrou-se também da Líbia ao comentar atitudes estadunidenses:

“E depois, atacaram o Afeganistão, o Iraque e violaram abertamente a resolução do Conselho de Segurança da ONU na Líbia, quando em vez de impor a chamada zona de exclusão aérea na região, começaram a bombardeá-la também”.

Mas aqui a razão não lhe assiste em nenhuma hipótese. O Conselho de Segurança, com um voto afirmativo da Rússia, aprovou o bombardeio através da Resolução 1973/2011.

As diferenças entre as situações de Kosovo, da Líbia e da Criméia residem no fato de que na Criméia não se concretizaram baixas na população civil por ação do governo central ucraniano, bem como não houve derramamento de sangue na tomada de posições militares pelas forças russas, com uma marginal exceção. No entanto, não é novidade para a política a defesa de uma ação preventiva, como ocorreu no Iraque nos anos 2000.

Se vier a espremer e fizer outros malabarismos com a linguagem, talvez a Rússia possa justificar suas ações também com base na doutrina da Responsibility to Protect.

Se havia ou há realmente risco à população civil russa na Ucrânia neste momento por conta das performances de seu próprio governo, o que eventualmente teria legitimado as ações russas, não será aqui discutido.

O que me parece claro é que poucos países podem arguir violações sem incorrer numa contradição performática: uso instrumentalizado de graves violações ou ameaças de violações de direitos humanos para alcançar fins políticos não é lá grande novidade.

A crise Ucrânia/Rússia mostra, no fundo, a tensão em que se encontram direito e a política mundiais, ou seja, a questão aqui é como estabelecer critérios para que situações similares não sejam manipuladas ao sabor do arbítrio de cada país belicamente poderoso. A solução a este problema, contudo, ainda conhecerá muitas balas até ser minimamente arquitetada.


[1] Conferir sobre este tema o texto de Strauss, E. (2009). The Emperor’s New Clothes?: The United Nations and the implementation of the responsibility to protect. Baden-Baden: Nomos.

 

About Maurício Palma
Maurício Palma é doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Concluiu estágio doutoral (doutorado-sanduíche) na Universidade de Bremen, Alemanha, com bolsa do PROBRAL (CAPES/DAAD). É mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Interessa-se por formas políticas e jurídicas globais.

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