A (in)constitucionalidade da proibição das palmadas

A formulação de políticas públicas voltadas contra a violência doméstica, como a Lei Maria da Penha, é extremamente importante para proteger minorias dentro da sociedade brasileira, marcada por machismo e autoritarismo, e pelo cometimento de lesões corporais e homicídios. Assim como a violência doméstica contra a mulher, a criança e o adolescente em seus lares frequentemente sofrem violações às suas integridades física e psíquica, através de agressões verbais, físicas, morais e psicológicas das mais variadas naturezas. No caso da criança e do adolescente, essas violações comumente são justificadas pelos pais por intermédio do direito de educá-los e corrigi-los. Resultado: distintos casos de crianças e adolescentes agredidos e assassinados pelos pais e familiares, perdendo suas vidas ou levando consigo danos irreparáveis.

O PL 7672/2010 (“Lei das Palmadas”) se insere no contexto em que os poderes públicos enxergaram a necessidade de fazer algo para combater a violência praticada contra a criança e o adolescente. De fato, é importante que algo seja feito, não apenas medidas punitivas de caráter criminal, uma vez que o Código Penal e disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA já criminalizam a violência física e psíquica contra tal população. É fundamental que políticas educativas sejam adotadas a fim de conscientizar e estimular os pais e familiares a não agredirem física e psicologicamente seus filhos.

Embora inserida nesse contexto de violência familiar, a “Lei das Palmadas”, que tem por objetivo impedir a adoção de quaisquer castigos físicos contra a criança e o adolescente, causa dúvidas a respeito de sua constitucionalidade, visto que ameaça os direitos à liberdade de opinião, de pensamento e de crença daqueles que, fundados em suas doutrinas religiosas, morais e filosóficas, creem que a utilização de palmadas pedagógicas são adequadas para fins de educação e disciplina familiar.

As religiões judaico-cristãs, por exemplo, fundadas em preceitos bíblicos contidos no livro de Provérbios, entendem que é correta a utilização das palmadas para corrigir a criança e o adolescente. Com a aprovação do PL, religiosos, e também não-religiosos defensores da prática, passarão a ser impedidos de exercer algo que entendem como correto.

Diria alguém: os direitos à liberdade de opinião, pensamento e crença não são ilimitados, podendo sofrer restrições nos casos em que ocorrer violação a direitos fundamentais. Dessa forma, os cidadãos não podem dar palmadas em seus filhos, uma vez que todo tipo de violência deve ser proibido.

De fato, não há direitos fundamentais ilimitados e todo tipo de violência física, psíquica e mental deve ser proibido, ainda que motivada por motivos religiosos, filosóficos ou morais diversos. No entanto, a dúvida que paira é a seguinte: palmada sempre é violência? Podemos interpretar a questão de duas maneiras: 1) palmada sempre é violência, devendo o Estado intervir contra todos os que batem em seus filhos, ainda que seja por motivos educacionais; ou 2) palmada, não necessariamente é violência, podendo ser exercida de forma benéfica, sem violar direitos da criança e do adolescente.

Não há consenso a respeito da matéria, tanto entre cidadãos, políticos e até mesmo entre psicólogos, educadores e pesquisadores. Em âmbito acadêmico, existem tanto pesquisadores que defendem manifestamente a absoluta proibição das palmadas por constituir violência[1], como pesquisadores que sustentam expressamente que o uso ocasional das palmadas, além de não constituir violência e não causar quaisquer danos comprovados, repercute positivamente na educação das crianças e dos adolescentes[2].

Diante da inconclusividade da matéria, caberia ao Estado decidir quem está certo na controvérsia a respeito da possibilidade ou não do uso de palmadas? Certamente não! Diante da ausência de consenso a respeito do assunto, o Estado constitucional, que (lamento as interpretações em sentido oposto) é liberal, permite que as pessoas vivam suas vidas de acordo com seus pensamentos, suas opiniões e suas crenças livremente, somente sendo restringidas e privadas de suas liberdades em uma única hipótese, a saber, a comprovada violação a direitos fundamentais.

No caso, a inconclusividade pública, política e científica impede comprovar que o uso das palmadas é violência e que necessariamente viola direitos fundamentais. E essa inconclusividade, por fim, impede que o Estado intervenha nas liberdades individuais dos cidadãos que defendem o uso moderado e ocasional das palmadas, sob pena de inconstitucionalidade por violação manifesta aos direitos à liberdade de opinião, pensamento e crença.

Desta maneira, podemos concluir que o PL 7672/2010 precisa ser reformulado, a fim de que as palmadas ocasionais e moderadas sejam resguardadas de qualquer intromissão ou penalização estatal, sob pena de inconstitucionalidade, por violação aos direitos à liberdade de opinião, de pensamento e de crença dos cidadãos defensores de seu uso.

Obs: Com o presente texto não se pretende fazer qualquer apologia à violência, muito pelo contrário, as disposições do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente devem ser aplicadas quando houver de fato violência contra a criança e do adolescente, como agressão física e o uso imoderado, exagerado e reiterado das palmadas. Importante, no entanto, é que o Estado assegure mutuamente os direitos da criança e do adolescente de não serem violentadas (além da criminalização, distintas políticas públicas educativas podem ser adotadas nesse sentido), sem se intrometer nas liberdades individuais dos cidadãos.



[1] Contra o uso das palmadas, vide WEBER, L. N. D.; VIEZZER, A. P; e BRANDENBURG, O. J. “O uso de palmadas e surras como prática educativa”. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-294X2004000200004&script=sci_arttext .

[2] A favor das palmadas ocasionais, vide: 1) Baumrind, D. “Does causally relevant research support a blanket injunction against disciplinary spanking by parents?” Disponível em http://prdupl02.ynet.co.il/ForumFiles/12221272.pdf ; 2) Entrevista de Diana Baumrind disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/reuters/ult112u5076.shtml; 3)  Entrevista de Denise Dias a respeito de seu livro “Tapa na Bunda” disponível em http://delas.ig.com.br/filhos/educacao/as-criancas-estao-precisando-de-tapa-na-bunda-diz-terapeuta-infantil/n1597302383185.html .

About Vinicius Franzoi
Vinicius Franzoi é Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília/UnB (desde 2012) e Bacharel em Direito pela UnB (2011). Tem interesse de pesquisa em filosofia do direito, constitucionalismo e direitos fundamentais, com ênfase nas liberdades de expressão e de religião.

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