Um Apólogo Constitucional

— Qual a causa verdadeira do motim?

O homem respondeu:

— A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.

O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:

— Quem encabeçou o movimento?

Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:

— Quem encabeçou o movimento foi um cego!

Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.

Apólogo Brasileiro sem Véu de Alegoria, Antônio de Alcântara Machado

 Autor: Damião Azevedo

As passeatas ocorridas recentemente lembram o conto citado na epígrafe. Ele narra uma revolta ocorrida em um trem-de-ferro que, numa noite de maio, cruza o Pará, onde o autor viveu entre 1915 e 1920. Um passageiro cego, músico de feira, fica indignado quando seu guia lhe informa não ser possível ler-lhe o jornal, por não haver luz elétrica no trem. O cego inicia uma agitação, explicando o “desaforo” da situação. A indignação se dissemina dentre os demais passageiros, transforma-se em revolta em que os bancos dos vagões do trem são destruídos.

Já por aqui, em 2013, no final do mesmo mês de maio, organizaram-se passeatas para se protestar contra o aumento de passagens de ônibus. Foram reprimidas com uma truculência que acabou por incentivar a organização de novos protestos, que, no mês seguinte, espalharam-se por praticamente todo o país, agregando as mais diversas reivindicações, não raro contraditórias entre si. Sem causas determinadas e sem lideranças definidas, as passeatas se tornaram válvulas de escape para toda ordem de insatisfação, todo tipo de indignação, de praticamente todos os vieses ideológicos. E, nesse roldão, também abriram oportunidade para violências, saques e depredações.

Inicialmente, o destaque da imprensa foram as depredações e, sobretudo, a aparente falta de legitimidade dos participantes das primeiras passeatas contra aumento de passagens, ironicamente descritos como jovens estudantes alienados de classe média, que não seriam usuários do sistema de transporte público e cujas reivindicações decorreriam de uma rebeldia política mal dirigida, na busca por uma causa qualquer. Por que, afinal, cegos reclamariam por lâmpadas?

Duas questões constitucionais primárias emergem imediatamente: Quem tem legitimidade para reivindicar a prestação de uma política pública específica? E como lidar com a violência deflagrada a partir de manifestações que lutam pelo reconhecimento de direitos?

Acredito que ambas as perguntas são desdobramentos de um mesmo fato, a produção social do direito. O direito não se produz apenas nos Diários Oficiais, onde são publicadas as leis, mas também nas práticas sociais cotidianas. Há muito que isso não é novidade. Já não há muita dificuldade em se aceitar que as decisões judiciais, e também os contratos criativamente elaborados pelos cidadãos, mesmo antes de chegarem aos tribunais, alteram o significado das leis e da própria constituição. A metáfora do direito produzido na rua, como livre expressão da autonomia de cidadãos que se reconhecem reciprocamente como iguais, produz uma imagem realmente fascinante. Entretanto, quando ocorrem depredações, prisões, ferimentos e até mortes, a realidade bruta nos lembra o lado doloroso das lutas por reconhecimento de direitos. Alguém que teve seu patrimônio destruído, que foi ferido, preso, ou que teve um familiar assassinado, certamente terá dificuldade em ver qualquer aspecto positivo nisso tudo, por mais legítima que possa ser a causa da manifestação.

Logo, é natural que surjam acusações de violência e de vandalismo. É compreensível que alguns casos possam ser apontados como abusos que põem em risco a legitimidade da reivindicação. Observando-se um fato isolado, parece absurdo que a falta de luz justifique a destruição de um vagão de trem. Mas será que revolta dos passageiros do conto foi provocada por um simples defeito na prestação do serviço?

A palavra “apólogo”, usada no título, em geral é usada para se referir a narrativas em que coisas, objetos inanimados, ou, eventualmente, animais irracionais, agem como pessoas e manifestam sentimentos tipicamente humanos. Porém, os personagens do conto são, todos, seres humanos, de modo que não se trata propriamente de um apólogo. Ou, talvez, ao utilizar essa expressão, o autor estivesse justamente a ironizar a situação desumana à qual aqueles cidadãos estavam submetidos.

“Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Magoarí.”

Mas naquela viagem de seis de maio havia um passageiro não habitual, casualmente cego, que lhes lembrou: “Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade.”

Em geral, o mero defeito de um serviço não é suficiente para transformar a indignação de um consumidor numa agitação ampla e radical. O que agitou os demais passageiros não foi a falta de luz no dia seis de maio, mas a consciência de que, “todos os dias”, eram tratados como carga. O que os mobilizou, o que lhes despertou a indignação, foi o clamor por dignidade, a ânsia por serem tratados como humanos.

Naquela escuridão silenciosa, os passageiros não se enxergavam. Foi preciso um cego – habituado a distinguir escuridões – para lhes fazer ver que não eram objetos inanimados, não eram carga. Mas a agitação só se alastrou porque havia um sentimento contido, reprimido, e compartilhado por todos. Sentiam que tinham o direito de serem tratados melhor.

Contudo, não sabiam como se expressar. Primeiro pela falta de experiência mesmo. Falta de hábito com essa lógica discursiva do direito. E, segundo, porque não tinham acesso aos canais próprios para sua reivindicação. Não poderiam fazer “uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos” e “foguetes também”, pois “isso custa dinheiro”. Sem dispor de outros recursos, a indignação irrompeu na depredação dos assentos dos carros, que eles próprios usavam.

Essa reação aparentemente irracional tem uma lógica sutil, mas que não pode ser desprezada. Basta pensar no direito de greve. Hoje é um direito reconhecido e previsto em leis e na Constituição. Mas sua história está recheada de eventos como o do trenzinho de Magoarí. Num primeiro momento, as greves eram vistas como baderna. E a “autoridade” reagia de maneira repressora. Todavia, aos solavancos, e não sem danos, a greve foi reconhecida como um direito e incorporada ao próprio ordenamento que inicialmente a reprimia.

Nas manifestações ocorridas recentemente também houve abusos, danos e violências de parte a parte. Mas esses fatos, ainda quando lamentáveis, não invalidam a experiência política que podem proporcionar. Infelizmente, boa parte das passeatas perdeu sua rota, ao sobrepor múltiplas demandas, sobrecarregando a agenda dos eventos e dispersando o foco dos participantes. Sem uma agenda concreta de reivindicações, não foi possível atrair novos interessados e, principalmente, criar outros fóruns que pudessem manter as reivindicações políticas vivas sob a forma de pautas propositivas, mesmo depois das passeatas.

Certamente nossa inexperiência democrática cobrou seu preço. Sofremos ainda com falta de articulação e com excesso de ansiedade. Tal qual uma criança que, ainda aprendendo a falar, tenta fazer vários pedidos de uma vez e acaba por produzir sons incompreensíveis.

Na década de 1960, Nelson Rodrigues cunhou a expressão “padre de passeata”, para ironizar as manifestações contra a ditadura. O “padre de passeata” representava a confusão ideológica da esquerda brasileira e de outras alas políticas que se diziam progressistas. Por meio do “padre de passeata”, Nelson Rodrigues atacava o hábito de se reduzir o debate político ao enunciado de lemas altissonantes, mas de conteúdo vago. Atacava a crônica incapacidade das esquerdas em formular políticas públicas práticas. A revolta do “padre de passeata” se exauriria em reclamar e protestar a esmo, incapaz de aproveitar as oportunidades oferecidas pelas grandes mobilizações públicas para criar canais permanentes de pressão e de debate político.

Difícil saber quais serão as lições que aprenderemos com esses eventos recentes. Não é impossível que, daqui a alguns anos, as manifestações de 2013 sejam vistas apenas como intempestivas procissões de “padres de passeata” reencarnados. Entretanto, também é possível que essas manifestações venham a se constituir em passos necessários ao aprendizado da democracia, capacitando nossa sociedade a lidar com as ferramentas de responsabilização política das quais dispomos. Uma experiência de como aprender a lutar por nossos direitos.

Porém, também poderão eventualmente ter significado relevante em nossa evolução política, desde que sejam apropriadas como eventos catalisadores da organização da sociedade civil em torno da pautas concretas de ação, sejam elas quais forem. Mas é necessário que sejam minimamente específicas, objetivas. Expressões vagas como “reforma política” nada significam, pois não há um modelo único para tal. É pouco provável que algo assim tão vago consiga vir a ser mais que uma “palavra de ordem”, pois dentro do tema “reforma política” cabem propostas de modificações eleitorais, de processo legislativo, de organização administrativa e incontáveis outros assuntos que não necessariamente estão associados, nem exigiriam os mesmos tipos de instrumentos normativos para sua regulamentação. Por exemplo, alguém que seja a favor do fim do voto obrigatório não necessariamente será a favor do financiamento público de campanhas. São causas distintas e que não se favorecem necessariamente. Da mesma forma, o fim do foro judicial privilegiado, a modificação das regras da reeleição ou das leis que definem a escolha de suplentes de senadores não são condições para aprovação do voto distrital. Aliás, a própria ideia do voto distrital é por si só uma agenda ampla, pois há diversos modelos de eleições distritais.

Quando alguém afirma ser contra o voto secreto nas deliberações do Congresso Nacional, qualquer um pode imediatamente concordar ou discordar. No entanto, quando alguém afirma ser a favor da “reforma política”, não é possível saber o que isso pode significar e, portanto, não é possível rejeitar, nem muito menos aderir a essa ideia.

Pedir que as lâmpadas do trem funcionem ou pedir que o preço da passagem de ônibus não aumente são reivindicações potencialmente mobilizadoras porque permitem imediato reconhecimento de objetivos. Também permitem que todos aqueles que se sentem afetados se identifiquem imediatamente com a causa. Mesmo quem possui automóvel estaria disposto a lutar pela melhoria dos transportes coletivos, pois isso lhe traria benefícios econômicos e de bem-estar imediatos, ainda que o mero descongestionamento do tráfego.

Manifestações das ruas e da opinião pública, por meio da imprensa ou das redes sociais de computadores, são eventos com notável visibilidade. São marcos nos noticiários. Porém, para que se transformem também em marcos constitucionais na conquista por direitos, é necessário que, para além de passeatas, essas manifestações superem a mera elaboração de lemas e que propiciem o engajamento da sociedade civil a reivindicações concretas, por mais simples e comezinhas que possam ser.

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1 Comentário
  1. Daniela Lacerda

    julho 24, 2013

    Muito bom, primo! Divulgando!