Não é incomum ouvir de pessoas aparentemente democráticas a defesa de políticas intolerantes e violadoras de direitos individuais a partir de alguns exemplos de aparente “sucesso” na história política de determinados países. Mais especificamente, estou falando dos exemplos de Cuba e Venezuela.

Ambos os países são apresentados como “modelos de democracia” em virtude do resultado concreto que alardeiam ter conseguido. Cuba é apresentada como modelo de sociedade porque a quase integralidade de seus cidadãos é alfabetizada e tem um sistema de saúde satisfatório. A Venezuela, por sua vez, de fato conseguiu diminuir muitas desigualdades internas. No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano, Cuba está na posição nº 51 e a Venezuela figura na 73ª posição. Para efeitos de comparação, o Brasil figura atrás dos dois países, em 84º.

Ou seja, apesar de termos uma democracia formal, estamos bem atrás dos dois países, que têm problemas com a proteção de direitos e garantias individuais. Problemas, também os temos; mas ao menos temos a liberdade para questionar, criticar o governo, criticar nossa polícia, exercer nossa liberdade de expressão para tentar mudar as coisas. Na Venezuela e em Cuba, isso não ocorre: tudo é visto em uma lógica de “amigo” e “inimigo” e, mesmo que se tolere “formalmente” a existência de uma oposição na Venezuela, ela é demonizada em nome da “Revolução Bolivariana”. Essa é a Revolução que bizarramente impôs a mudança de data do Natal, por exemplo, para mascarar o fracasso do modelo econômico adotado. E também permitiu que faltasse papel higiênico na prateleira do supermercado. E obriga a população a conviver com racionamento de comida e energia.

Em Cuba, a própria possibilidade de convivência com o “inimigo” inexiste. Mesmo as reformas do governo de Raul Castro têm se mostrado muito tímidas para trazer algo próximo da democracia à Ilha. Acuados, muitos dos defensores do modelo dizem que Cuba não consegue trazer liberdade a seus cidadãos por conta do embargo econômico americano. O argumento é falacioso, porque o governo cubano tem total autonomia para garantir direitos aos cidadãos, a fim de que eles possam de fato manifestar seus reais interesses. Nada no embargo americano tira do governo a autonomia para lidar com seus cidadãos do modo que bem entender. Afinal, o que mudaria se se garantisse uma imprensa livre no país, ou os demais direitos civis e políticos? Apenas uma coisa: a possibilidade de a população escolher mudar o rumo das coisas. Esse detalhe é algo tão básico em qualquer modelo de democracia que se escolha.

Mas, pelo menos, estão obtendo bons resultados, diz a defesa. Contudo, os mesmos defensores de Cuba e Venezuela normalmente criticam muito outras ditaduras. Criticam, por exemplo, a ditadura brasileira, por ter torturado opositores e controlado a imprensa.  Pleiteiam, hoje, por uma comissão da verdade e para a revisão da Lei de Anistia. Criticam a ditadura argentina e a ditadura chilena, que também acobertaram inúmeras violações de direitos humanos. Concordo com as críticas. Nenhum país deveria ter que recorrer à tortura e à violação de outros direitos fundamentais para manter uma estrutura de governo.

Mas a crítica dos defensores de Cuba e Venezuela é parcial. Criticam ditaduras de “direita”, mas defendem ditaduras de “esquerda”. A questão fundamental desse posicionamento não é uma luta por democracia, mas uma luta pela afirmação de um modelo econômico socialista contra um modelo mais voltado ao mercado. A democracia só é utilizada como meio; o fim é a estabilização ideológica de um modelo político específico.

Essa é uma maneira torta de enxergar as coisas. A pedra fundamental da democracia é a possibilidade da crítica e da alternância no poder. A democracia é um fim em si mesma. A economia deve funcionar de modo compatível com um sistema democrático. Esse é o postulado que os defensores de Cuba e Venezuela normalmente utilizam para criticar as ditaduras de esquerda. Mas não usam o espelho; tudo o que criticam na política destra é tolerado e até estimulado na política canhota.

Concordo com a premissa de que a democracia é um fim em si mesma. Mas essa premissa se aplica aos dois lados. A comissão da verdade deve ser utilizada para descobrir os crimes das ditaduras brasileira,  argentina e chilena. Mas também deve ser instaurada em Cuba e Venezuela para averiguar as várias acusações de violação a direitos fundamentais que têm sido perpretadas por lá. As oposições devem ser anistiadas – aqui e lá. Não dá pra usar duas réguas morais. A régua é a mesma pros dois lados.

Além disso, o próprio argumento do “sucesso redistributivo” é contraditório. Varrem pra debaixo do tapete as violações de direitos em Cuba e Venezuela com base no IDH. Mas o IDH dos dois países é relativamente baixo! São melhores que o do Brasil? Sim, mas isso não significa que o IDH deles é fantástico, e sim que o nosso está abaixo do sofrível!

Se fosse possível justificar alguma ditadura com base em seu sucesso redistributivo e econômico – e estou assumindo isso apenas hipoteticamente -,  então a única das ditaduras discutidas acima que se justificaria seria a de Pinochet no Chile. Sim, porque o economicamente liberal Chile é o país que apresenta o melhor IDH entre os países citados – é o 44º da lista.  Se o problema é o modelo econômico e os resultados que ele consegue alcançar, então a ditadura chilena estaria mais do que justificada. Obviamente, não defendo isso. O meu ponto não é que ditaduras que alcançam bons resultados são justificadas. O ponto é que nenhuma ditadura jamais é justificada, mesmo que alcance os melhores resultados possíveis.

Adoto aqui as considerações do filósofo norte-americano John Rawls, que em uma das obras mais importantes da filosofia política do século XX, Uma Teoria da Justiça, construiu um modelo teórico em que afirma a primazia dos direitos fundamentais e da democracia sobre qualquer ajuste de redistribuição econômica. A economia está subordinada ao direito e à democracia. Defender Cuba e Venezuela é atentar contra esse postulado. É cegueira ideológica acreditar que é possível impor a todo o restante da população o seu ponto de vista como sendo o único correto.

Imagem em destaque via Flickr

About Fábio Portela
Fábio Portela L. Almeida é Mestre em Direito, Estado e Constituição (2007), em Lógica, Filosofia da Linguagem e Teoria da Mente (2011) e Doutorando em Direito (desde 2012), pela Universidade de Brasília. Visiting Researcher na Universidade Harvard (2013). Tem interesse em teoria dos direitos fundamentais e em teoria do direito, com ênfase na conexão entre direito e economia, biologia e sociologia.

View all post by Fábio Portela »

Nenhum Comentário

Deixe uma resposta