Liberdade de expressão política para os fundamentalistas religiosos?

É curioso como mudou nos últimos anos o enfrentamento de matérias até pouco tempo consideradas tabus na sociedade brasileira: a homossexualidade, sempre alvo de preconceito e discriminação e que até 1990 foi listada como patologia pela Organização Mundial de Saúde, tem recebido crescente apoio da população, da mídia, do governo e dos movimentos sociais; o aborto, desde 1940 tipificado como crime doloso contra a vida, vem a ser alvo de constantes debates voltados a sua descriminalização; e a temática das drogas ilícitas, nessa mesma linha, também tem obtido crescentes adesões com vistas a sua legalização – enquanto há quase duas décadas os membros da banda Planet Hemp eram presos por cantar “legalize já, legalize já” em shows de rock, há dois anos o Supremo Tribunal Federal reconheceu a legalidade do movimento “Marcha da Maconha”.

 Embora essas mudanças venham sendo festejadas por muitos como “avanços” e “progressos” em prol do reconhecimento dos “direitos humanos”, outros, por motivos morais, filosóficos e/ou religiosos, acusam-nas de “imoralidade”, “pecado”, “abominação” e “desrespeito às leis divinas”. Não se restringindo às referidas acusações, também mobilizam parlamento, governo e poderes públicos objetivando a imposição de seus valores éticos sobre o Estado – vide os casos da “Cura Gay” e do “Estatuto do Nascituro”, fortemente defendidos por Marco Feliciano. Eaí, Arnaldo, pode isso?

É claro que sim, a regra é clara, política é conflito, diria Chantal Mouffe. Ao invés de restringir a política aos ideais da razão pública, na linguagem rawlsiana, ou a um espaço pela busca do melhor argumento, segundo a teoria discursiva habermasiana, a esfera pública deve admitir as mais variadas doutrinas, religiosas ou não, conflitantes ou não, que tenham ou não a pretensão de se impor sobre todo o ordenamento jurídico e sobre todas as pessoas. Reduzir a política a conceitos de razoável e irrazoável ou a campo de solução e mitigação de conflitos é fechar os olhos para a pluralidade e complexidade das sociedades atuais, principalmente no Brasil, em que distintos políticos e cidadãos pretendem obter poder, cargos, influência e participação nas decisões mais importantes da sociedade, não sob uma ótica coletiva voltada ao consenso, mas com vistas a favorecer suas opiniões, ideias e doutrinas individualmente defendidas.

Importa pontuar que não parece juridicamente interessante que os projetos da “Cura Gay” e do “Estatuto do Nascituro” sejam aprovados pelo Parlamento brasileiro, visto que podem contribuir para a imposição dos valores éticos e religiosos de alguns cidadãos no âmbito do Estado, que é laico. Contudo, a existência desses projetos faz parte da política, do conflito e do antagonismo a ela inerentes. Caso aprovados no Legislativo, nada impedirá o questionamento dos referidos projetos perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de que, no caso, seja assegurada a defesa dos direitos fundamentais relacionados com a matéria, assim como concretizado o princípio constitucional da laicidade estatal.

Sob essa ótica, a esfera pública política deve ser o local em que os conflitos – raramente solucionáveis – são potencializados, amplamente postos em evidência, discussão e confronto, a fim de que as decisões estatais sejam suficientemente refletidas, testadas e debatidas por todos, religiosos ou não, políticos ou não, parlamentares ou não, que queiram ou não impor suas cosmovisões sobre todos. É claro que alguns limites podem ser impostos a determinados discursos claramente violadores a direitos fundamentais, o caso-a-caso irá especificá-los, mas a regra é clara: deixemos todo mundo se expressar na esfera pública política, todos, inclusive os fundamentalistas religiosos, até mesmo o Marco Feliciano!

About Vinicius Franzoi
Vinicius Franzoi é Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília/UnB (desde 2012) e Bacharel em Direito pela UnB (2011). Tem interesse de pesquisa em filosofia do direito, constitucionalismo e direitos fundamentais, com ênfase nas liberdades de expressão e de religião.

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