Por Alexandre Araújo Costa

Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília

 

 

Quando eu ouvi essa história, quase não acreditei: por decisão administrativa (Resolução n. 133/2011), o CNJ concedeu aos juízes brasileiros uma série de benefícios, sob o argumento de um pretenso direito constitucional de equiparação ao Ministério Público. Qualquer carreira do Brasil que pretendesse equiparação a outra teria de ingressar com uma ação judicial, a qual teria mínimas chances de prosperar porque essa pretensão viola o entendimento reiterado dos tribunais e uma súmula do STF.

 
A história começa com um pedido da AJUFE, perante o CNJ, que teve como advogado o neoconstitucionalista Luis Roberto Barroso. O voto do relator do processo, José Adonis de Sá (que é do MP e não do Judiciário), foi logo proferido e apresentou a evidente conclusão de que a concessão desse pedido ultrapassaria as competências do CNJ e lembrou que esse tipo de posicionamento não seria possível sequer a órgãos judicantes sem que fosse revista a Súmula n. 339 do STF (não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia), tida como recepcionada pela Constituição Federal vigente (RMS 21.662-DF, Rel. Min. Celso de Mello).

 
Na votação, venceu o corporativismo dos magistrados, que causou desagrado evidente a vários dos participantes e que fica manifesto no voto vencido de Cesar Peluso: “Não há muito por declarar. O pedido é de todo em todo improcedente, assim porque, de plano, insulta a orientação sedimentada na súmula 339 do egrégio Supremo Tribunal Federal, como porque, desde a edição da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, é manifesto que qualquer estipulação de remuneração de servidores e agentes políticos depende da edição de lei formal, não sendo lícito a órgãos jurisdicionais e, a fortiori, muito menos, a administrativo, conceder, seja a que título for, vantagem pecuniária a magistrado ou a servidor público.”

 
Apesar da oposição de vários dos Conselheiros, o Judiciário (poder que o CNJ integra) adotou a posição vergonhosa, para dizer o mínimo, de promover uma equiparação a si próprio, em um caso explícito de legislação em causa própria. Só em SP, esse pagamento consumiu R$ 145.000.000. E esse fato foi noticiado pela Associação dos Magistrados Federais AJUFE em um informativo que assim começa: “Conseguimos avançar no campo dos direitos com a decisão do CNJ que resultou na Resolução 133”[sic!!!]. Nesse mesmo informativo também se festeja a ideia esdrúxula de conceder aposentadoria especial a magistrados devido ao constante estresse e excessiva carga de trabalho.

 
Para completar o disparate, a AJUFE defendeu que essa decisão tem efeitos que retroagem a 2003, quando foi suspenso o pagamento do auxílio alimentação “pois a decisão do CNJ, órgão administrativo de cúpula do Poder Judiciário, constitui claramente hipótese expressa de renúncia à prescrição por parte da Administração Pública”. Essa é uma afirmação tão absurda que eu mesmo só acreditaria lendo o informativo, que se encontra em: http://www.ajufe.org.br/portal/pdf/Informativo_18.pdf.

 
Completando essa história de assalto ao erário, o Conselho Nacional do TST tenta justificar a validade da Resolução com um argumento tão despropositado que merece ser transcrito na íntegra “Portanto, ao reconhecer que o direito ao pagamento do auxílio-alimentação aos magistrados deriva diretamente do texto constitucional, resta evidente o caráter meramente declaratório da Resolução nº 133, de 21 de junho de 2011, do CNJ. Ou seja, o Eg. Conselho Nacional de Justiça, por meio da referida Resolução, não inovou no ordenamento jurídico ao extender o auxílio-alimentação aos magistrados, mas apenas declarou um direito já previsto em sede constitucional.” Então quer dizer que a concessão de benefícios não é inovação no sistema jurídico porque se trata de reconhecimento de um direito constitucional! De fato, esse posicionamento é uma inovação e tanto na dogmática constitucional brasileira. Com base nesse precedente, vou inclusive sugerir que o CONSUNI eleve os salários dos servidores da UnB ao patamar dos servidores do judiciário, por decisão administrativa, porque essa desigualdade viola a constituição e decisões de caráter declaratório dispensam a existência de lei ou de decisão judicial.

 
Mas houve quem buscou impedir a concretização desse caso duplamente nonsense de legislação judicial em causa própria. Pesquisando na internet, descobri que o procurador Carlos André Studart Pereira impugnou a decisão mediante Ação Popular movida no STF. Procurei essa ação no Acompanhamento Processual do STF e descobri que a petição inicial foi indeferida pelo min. Luiz Fux em uma decisão monocrática que faz jus ao corporativismo da resolução impugnada.

 
Luiz Fux argumenta que “fica evidente que a presente ação popular foi ajuizada com o nítido intuito de substituir uma eventual ação direta de inconstitucionalidade” e que “a ação popular tem como objetivo anular atos administrativos lesivos ao Estado, e não a anulação de atos normativos abstratos e de leis estaduais.” Malabaristicamente, uma resolução do CNJ se transforma em ato normativo abstrato impugnável apenas pelos legitimados constitucionalmente a mover uma ADI.

 
Além disso, nunca vi uma argumentação tão grande sobre o mérito para justificar que o mérito não seria analisado, fato aliás ressaltado no agravo movido contra a decisão e que ainda não foi julgado. Embora o STF mostre uma tendência a decidir monocraticamente os processos que o relator considera improcedentes (o que se revela pelo altíssimo índice de procedência dos que chegam a ser julgados), raramente uma questão tão relevante é retirada da análise do STF por meio de uma decisão tão inconsistente.

 
E para completar a inversão completa da hermenêutica jurídica, o eminente ministro chega a afirmar que “uma interpretação evolutiva do texto da LOMAN, que guarde compatibilidade com o texto constitucional, revela o necessário reconhecimento dos direitos aos magistrados que sejam ordinária e regularmente pagos aos trabalhadores, tal como ocorre com o pagamento do auxílio-alimentação. À guisa de ilustração, a LOMAN não prevê expressamente o direito à licença-paternidade, não assegura o direito à licença-maternidade, não garante expressamente o direito ao adicional de férias. É razoável sustentar que apenas as juízas brasileiras não terão, por exemplo, direito à licença-maternidade em razão da ausência de previsão expressa na LOMAN?”. Incrivelmente, a extensão de um benefício por decisão administrativa de equiparação é igualada a concessão de benefícios definidos pela Constituição ou por leis.

 
Mas essa é justamente a questão: todo o argumento de Luiz Fux trata uma resolução do CNJ como uma lei em sentido formal. Essa é a premissa não dita expressamente, mas que atravessa todo o texto. Não apenas se trata de admitir que o Judiciário é o intérprete maior da CF, mas agora seus atos administrativos ganharam o caráter de lei formal.

 
Felizmente, a OAB ingressou recentemente com ADI contra a referida Resolução. Espero que o STF não decida agora indeferir o pedido da inicial por considerar que não cabe ADI contra decisão administrativa do CNJ, pois aí teríamos decretado o estado de exceção, já que benefícios ao judiciário simplesmente não poderiam ser questionados judicialmente.

 

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1 Comentário
  1. Vinicius Franzoi

    abril 8, 2013

    A concessão de auxílio-alimentação através de resolução do CNJ até é admissível, por ser uma verba indenizatória que é concedida para diversas carreiras ainda que sem previsão em lei em sentido estrito (no próprio Ministério Público há auxílio-alimentação para membros e servidores apenas em decorrência de Portaria do PGR). Os demais benefícios, contudo, são bastante questionáveis, visto não haver lei em sentido estrito concedendo-os. Apenas seria admissível se considerássemos que a Lei 8.112/90 é aplicável de forma subsidiária para todas as carreiras do país, o que para mim, contudo, seria altamente questionável.