O modelo de concurso público define como julgam os juízes brasileiros?

Como uma sociedade democrática deve selecionar seus juízes? Por mais que essa pareça ser uma questão simples, não há consenso. No Brasil, parece ser um ponto pacífico que os membros do Poder Judiciário devem ser escolhidos por critérios técnicos avaliados por meio de concurso público. Mas isso não é necessário: nos Estados Unidos, juízes podem ser eleitos, por exemplo. Na Alemanha, os juízes são escolhidos como uma decorrência do sucesso acadêmico do candidato em potencial, com processo de seleção rigoroso que se inicia durante a graduação. Na França, o acesso via concurso público convive com a possibilidade de que professores de Direito, servidores públicos e advogados com extensa qualificação teórica eprofissional sejam indicados à Magistratura. Mas, mesmo lá, há um extenso processo de treinamento na Escola Nacional de Magistratura, que precede a atividade judicante e dura 31 meses.

Não existe um modelo correto. Escolher um determinado sistema de recrutamento de juízes significa abraçar determinados princípios e renunciar a outros. Se os juízes são eleitos, fica a impressão de que ganhamos em legitimidade, mas perdemos em imparcialidade. Afinal, juízes eleitos têm um eleitorado e, como qualquer eleição com financiamento de campanha livre, têm o suporte de importantes (e endinheirados) grupos de interesse. Uma olhadinha em algumas campanhas políticas de candidatos ao cargo de juiz nos EUA ilustra problemas que há muito vemos em eleições para cargos representativos: troca de acusações, interesses sorrateiros subjacentes à propaganda a favor de determinado candidato, além das nada honrosas cenas de comédia involuntária:

Por outro lado, também há problemas no modelo de recrutamento via concurso público. A crítica mais óbvia é a de que ele é um modelo antidemocrático, pois a escolha dos magistrados não leva em consideração a vontade manifesta dos cidadãos a respeito de quem participará do Poder Judiciário. Por outro lado, os defensores do modelo apontam suas vantagens manifestas: o concurso viabilizaria a seleção dos candidatos mais capacitados tecnicamente, além de ser um processo seletivo cuja legitimidade deriva da possibilidade da ampla fiscalização de todas as etapas e de sua objetividade, já que supostamente cada candidato deve responder a questões de natureza técnica. O resultado desse procedimento neutro seria a seleção de juízes imparciais, tendo em vista que não dependeram de nenhum apoio político para serem investidos no cargo.

Contudo, a problematização dos argumentos apresentados a favor do concurso público mostra o quanto seus fundamentos são frágeis.

Em primeiro lugar, é preciso refletir sobre o que significa selecionar os “candidatos mais capacitados tecnicamente”. Em exercício socrático, poderíamos perguntar: o que significa ser um juiz técnico? Seguir única e exclusivamente a legislação? Jamais questionar a jurisprudência do tribunal?  Ou ousar defender novas teses jurídicas com o objetivo de melhor proteger os interesses do jurisdicionado e os objetivos normativos do ordenamento jurídico? Para a “opinião pública” (leia-se: a opinião dos “especialistas” entrevistados pela maioria dos jornais e das revistas de massa), juiz técnico é o que apresenta o primeiro perfil; é o juiz cuja atividade intelectual se limita a aplicar a legislação e a jurisprudência.

Ocorre que a opção por esse perfil de magistrado ignora um século de discussões em teoria jurídica e em domínios especializados de filosofia da linguagem. Algumas das mentes mais brilhantes do século passado mostraram o quanto o nosso uso da linguagem é impreciso e contextual, e o quanto a hermenêutica jurídica francesa do século XIX (segundo a qual o juiz deveria se limitar a ser a “boca da lei”) estava equivocada. Tanto a hermenêutica continental quanto a filosofia analítica, as principais tradições filosóficas que discutiram esse problema, chegaram à mesmíssima conclusão: não há como extrair um sentido único de um texto. Entretanto, a “opinião pública” ignora essa discussão e acredita que, por meio de um exame, é possível identificar se um candidato conhece profundamente o direito ou não.

Como resultado, as provas de concurso da magistratura (e, a rigor, qualquer outra prova de concurso público) apresentam como “objetivas” questões que, em boa parte das vezes, dependem de uma avaliação “subjetiva”. Disfarçado sob um manto de objetividade em questões objetivas e discursivas sobre a legislação e a jurisprudência está implícito um perfil de candidato. É cediço que as questões de concurso se baseiam em obras de autores tidos como consagrados, usualmente ligados a determinadas editoras e a contextos sociais específicos. Basta visitar a sala de aula de cursinhos famosos para perceber isso: vários professores escancaram na sala de aula que o tribunal “A” está afiliado ao pensamento de autor “X”, ao passo que o tribunal “B” está afiliado ao pensamento do autor “Y”. Segundo a banca de concurso “C”, a jurisprudência dominante é em um determinado sentido; de acordo com a banca de concurso “D”, é no sentido oposto. Com isso, cada banca seleciona candidatos segundo seus próprios critérios “técnicos”, excluindo-se candidatos igualmente competentes mas que têm ideologia diversa daquela prescrita pela banca.

O resultado desse processo é a seleção de juízes cada vez mais subservientes a uma tradição jurídica específica. Para o bem e para o mal, a jurisprudência é cada vez mais reforçada e menos criticada por aqueles que deveriam ser os primeiros a forçar seus limites a partir dos elementos extraídos de casos concretos. O processo interno de promoção de juízes por merecimento reforça esse viés, já que os magistrados mais obedientes têm maior chance de serem promovidos. Felizmente, essa consequência é atenuada pela alternância de promoções por merecimento e por antiguidade. Mas já nas provas de seleção é possível escolher o perfil dos candidatos que se deseja, por critérios completamente alheios aos que seriam esperado em uma democracia constitucional. O “mérito” termina por ser confundido com o famoso “decoreba” sem sentido de leis e de jurisprudência, suavizado por questões “práticas” que, na verdade, são apenas um conjunto de pegadinhas processuais que em pouco se relacionam com o mundo da prática processual.

Evidentemente, não existem escolhas institucionais perfeitas. Cada escolha implica abraçar em conjunto os pontos positivos e negativos da opção institucional escolhida. Mas é possível minimizar os efeitos nefastos da homogeneidade que é privilegiada pelo modelo atual de concurso público. Uma possibilidade é a de incluir obrigatoriamente nas bancas de concurso professores de Direito das universidades públicas estaduais e federais. A Academia é fonte de reflexões importantíssimas para o meio jurídico e a inclusão de membros vinculados a ela garantiria ao certame um elemento de imprecisão bastante útil para a seleção de candidatos com perfis diferenciados. Também nessa linha – e seguindo o que ocorre, por exemplo, na França – a indicação de profissionais, servidores públicos e acadêmicos experientes poderia dar à primeira instância um perfil mais heterogêneo, trazendo às discussões jurídicas olhares diversos e antagônicos que decerto contribuiriam para a melhor solução dos casos concretos. O direito não é “objetivo” como um cálculo algébrico; nele, a multiplicidade de olhares é a única capaz de assegurar a imparcialidade institucional.

Evidentemente, essas são apenas algumas sugestões. O principal objetivo desse artigo é suscitar a discussão a respeito do modelo de recrutamento dos juízes de primeiro grau. Se no segundo grau a carreira é aberta a membros do Ministério Público e a advogados, no primeiro grau ela também deveria ter maior abertura a fim de que os mais diversos profissionais do direito possam contribuir com perspectivas e experiências diversas. Isso não significa abrir mão do “mérito”; evidentemente, poderiam – e deveriam – ser discutidos os critérios acadêmicos/profissionais/técnicos necessários a que se selecionem candidatos e membros das bancas de seleção com as mais diversas origens intelectuais e profissionais.

Mas essa é uma discussão que precisa ser travada pela sociedade civil. E você, o que pensa sobre o tema? Não deixe de opinar enviando seu comentário!

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1 Comentário
  1. PIERRE ARAGÃO PONTES

    janeiro 12, 2014

    Entendo que o método de seleção via concurso público, apesar dos defeitos apontados, é ainda o mais confiável. Estamos em um País medieval. A indicação de magistrados, POR EXEMPLO, pelo quinto constitucional, é uma aberração. Os interesses existentes fazem com que algumas destas indicações beirem o absurdo. Indicação, só para os tribunais superiores. Magistrado não é AGENTE POLÍTICO, É SERVIDOR PÚBLICO.Portanto, deve ser responsabilizado por sua dessídia e preguiça. Urgentemente deve-se restabelecer o respeito pelo judiciário pois, sem este, a democracia, ainda não consolidada, corre perigo.

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