Deferência ao legislativo ou omissão do debate público? O Supremo Tribunal Federal e o discurso de posse do min. Ricardo Lewandowski

Deferência ao legislativo ou omissão do debate público?

O Supremo Tribunal Federal e o discurso de posse do min. Ricardo Lewandowski

Lewandowski

I. Considerações iniciais

Cerimônias oficiais costumam ser um momento não muito agradável ao observador. Ao invés de argumentações e justificativas, do embate entre ideias, o que se vê são rituais formalizados, trocas de elogios e muita camaradagem. Talvez, entre outras razões, isso explique porque os estudos de caso são majoritários no que diz respeito ao Supremo Tribunal Federal. As decisões judiciais abrem as portas aos fundamentos jurídico-constitucionais aplicados no caso concreto.

No entanto, os eventos de renovação da presidência do Supremo Tribunal Federal tem chamado atenção contra essa tendência dos estudos constitucionais na direção de uma maior observância complementar entre discursos e palestras dos ministros e suas decisões judiciais. Parece-me que os ministros, em seus pronunciamentos marcados pelas boas referências aos demais colegas, além disso, mostram-se menos pressionados e mais desimpedidos de falarem o que pensam.

As cerimônias estimulam a oportunidade deles apresentarem razões que, muitas vezes, aparecem não tão explícitas em seus julgados. O ministro Luiz Fux, por exemplo, na posse do então presidente do STF, Joaquim Barbosa, não deixou de exaltar a corte constitucional brasileira e o neoconstitucionalismo do século XXI. Em uma parte do discurso, chegou a fundamentar teoricamente contra os críticos do protagonismo que a Corte vinha exercendo no julgamento de casos de grande repercussão social.  Anteriormente, em outro momento, mas não menos surpreendente, chamou atenção à defesa feita pelo ministro Celso de Mello por uma postura mais ativista do STF na ocasião das solenidades de posse da presidência do min. Carlos Ayres Britto.

Recentemente, no discurso do dia 10 de setembro de 2014, ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ricardo Lewandowski pareceu sinalizar que direcionaria o timão da Corte voltado a um caminho que, talvez, deixarão muitos analistas contentes: a tão esperada autocontenção judicial por parte do Supremo Tribunal Federal.

“Propomo-nos, ademais, a respeitar e fazer respeitar a independência e harmonia entre os Poderes, estimulando nos juízes a adoção da salutar atitude de self restraint, de autocontenção, praticada pelas cortes constitucionais dos países democráticos. Com isso queremos dizer que o Judiciário só deve atuar, para suprir eventual lacuna normativa ou inércia administrativa, em caráter excepcional e provisório, e apenas quando a decisão pretoriana se mostrar necessária e inadiável, permitindo, como regra, que o Legislativo ou o Executivo – representantes diretos da soberania popular – possam concluir as suas deliberações no tempo que considerem politicamente mais adequado para o País.”

A intenção é por ordem na casa. Uma das justificativas presentes no discurso do atual presidente do STF diz respeito à crescente demanda que enfrenta o judiciário brasileiro. Assim, as prioridades apresentadas por Ricardo Lewandowski, fundamentando-se em medidas de eficiência concentram-se: a) uma maior resolutividade no sentido de dar vasão aos processos; b) reestruturação dos institutos da repercussão geral e das súmulas vinculantes; c) estimular os magistrados garantindo um aumento de suas remunerações; d) dispensar situações que coloquem o Judiciário, mais especificamente, o STF, em questões limítrofes frente os interesses dos demais poderes.

Primeiramente, ater-me-ei ao último ponto em destaque. Em que medida a autocontenção defendida por Lewandowski pode se configurar em uma omissão institucional a questões relevantes no debate público? O discurso de eficiência funcional da Corte guarda alguma relação com as futuras práticas decisórias do Supremo? A resposta para essas perguntas, talvez possam ser adequadamente compreendidas investigando o que o ministro Lewandowski entende por autocontenção judicial contida em alguns de seus votos.

II. Decisionismo, judicialização, ativismo ou auto-contenção? Uma releitura do assunto por meio dos votos do min. Lewandowski

A postura ativista de um órgão jurisdicional é, geralmente, considerada homônima ao decisionismo judicial, ou seja, a declinação do Poder Judiciário em legislador positivo[1]. Nesse sentido, o texto constitucional confere ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, mas não a produção da lei. Isso porque, é o Congresso Nacional e seus legisladores que devem ser compreendidos como legítimos representantes da soberania popular. O ativismo do STF configuraria uma usurpação de competência em prejuízo do princípio de separação de poderes. Esse parece ser em um primeiro momento, o entendimento do min. Lewandowski em seu voto dissidente a favor da criminalização do aborto de fetos anencefálicos:

“De fato, como é sabido e ressabido, o Supremo Tribunal Federal, à semelhança do que ocorre com as demais Cortes Constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo-lhe a relevante – e por si só avassaladora – função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com o Texto Magno.”

No entanto, as relações institucionais entre os poderes não estão dispostas de modo tão simples.

A produção legal negada à instância jurisdicional, por vezes, confunde-se com a participação na construção das normas constitucionais, cuja participação do Supremo se dar por meio da atividade interpretativa e da concretização constitucional. O Poder Judiciário não deve se portar apenas como “la bouche qui prononce les paroles de la loi” como preconizara Montesquieu. Em último caso, na ausência de tratamento jurídico do legislador ou do constituinte originário, caberia ao Supremo complementar o que ainda não foi juridicamente apreendido, mas que, no plano fático, exige-se uma resposta judicial. Tal dilema foi enfrentado pelo min. Ricardo Lewandowski no caso da união homoafetiva.

O min. argumentou pela proteção constitucional, mas preferiu negar o reconhecimento judicial de que a união de duas pessoas do mesmo sexo corresponderia ao conceito de família nos moldes da ordem jurídica brasileira. Tratar-se-ia de um novo conceito, denominado como “entidade familiar”, mas tão pouco esclarecido quais seriam os fatores preponderantes para tal distinção. O certo é que, desse modo, restringiu-se o direito de uma minoria sobre a possibilidade de usufruir de alguns direitos de família e sucessões livremente compartilhados entre casais heterossexuais[2].

Na ocasião, em um voto confuso, omisso em vários pontos importantes e, em algumas passagens, contraditório, o ministro entendeu que, uma interpretação extensiva e o igual tratamento jurídico entre casais homos e héteros seria constitucionalmente injustificado. Desse modo, a orientação sexual dos indivíduos é entendida pelo atual presidente do STF, mesmo que implicitamente, como fator determinante para que se relativize o princípio da igualdade jurídica aplicando uma discriminação negativa aos casais homoafetivos. A confusão do voto do ministro pode ser resumida no seguinte trecho:

“Convém esclarecer que não se está, aqui, a reconhecer uma “união estável homoafetiva”, por interpretação extensiva do § 3º do art. 226, mas uma “união homoafetiva estável” [alguém entendeu a diferença com esse jogo de palavras?], mediante um processo de integração analógica. Quer dizer, desvela-se, por esse método, outra espécie de entidade familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um homem e uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto constitucional.”

O decisionismo judicial, assim como o formalismo em excesso, deve ser efusivamente criticado. Tais termos podem suscitar uma série de má-compreensões se confundidos com o que convencionalmente denominou-se por ativismo judicial ou autocontenção judicial.

A noção ativismo v. autocontenção, importada da tradição norte-americana, configura-se de modo deslocado na realidade brasileira, gerando mais confusões do que esclarecimentos[3]. O fato é que tanto juízes que não veem problemas maiores em serem ativistas, como o min. Luiz Fux, como defensores da autocontenção, o min. presidente Ricardo Lewandowski, podem incorrer em interpretações absurdas e argumentações arbitrárias.

Nesse sentido, a segurança jurídica e a legalidade não estão apenas ao alcance dos magistrados e ministros que prezam, estritamente, pela consistência lógico-formal de conceitos jurídicos empregados nas decisões judiciais. Muito menos, àqueles que acreditam em novas configurações do constitucionalismo e se apegam em princípios, geralmente inventados, e valores fundamentais, muitas vezes pessoais, deixando de lado as apreensíveis seletividades contidas nos textos jurídicos.

Óbvio que nenhum juiz justificaria suas decisões simplesmente com um “porque assim quero” ou “por que assim gostaria que fosse”. Contudo, se mantivermos atentos aos padrões argumentativos de alguns, é possível perceber uma grande diferença entre a justificação racional das decisões, e uma enrolação jurisprudencial com o predomínio de uma falsa fundamentação[4].

O ministro Ricardo Lewandowski parece não gostar de hard cases. Talvez porque, em casos como estes, suas íntimas convicções religiosas, seus valores pessoais, seus apreços, desprezos e suas convicções políticas pessoais, todos esses fatores externos ao sistema jurídico, sejam duramente testados no momento de decidir. Ao mesmo tempo, a discrição jurisprudencial que lhe é peculiar afeiçoa-se a um modelo de racionalidade jurídica temerário, que pode ser denominado de autocontenção decisionista. Autocontenção porque prefere se esvair no enfrentamento progressista nos temas de grande repercussão social; e decisionista porque, ao se deparar numa situação dessas, usufrui-se de uma falsa fundamentação jurídica, marcada por omissões temáticas relevantes às questões tratadas, baseando-se em argumentos de autoridade.

Sob a áurea de uma separação de poderes como pressuposto institucional formalista, Lewandowski costuma imprimir convicções personalistas em seus votos. Além dos já supracitados, outro que chamou atenção nesse sentido foi sua decisão no caso da inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança:

“Penso, portanto, que, à luz da legislação comparada e, em especial, da Resolução do CFM sobre a reprodução assistida, que o art. 5º, caput, da Lei de Biosegurança precisa ser harmonizado com o postulado da dignidade da pessoa humana e com o direito à vida, compreendidos na acepção que lhes conferi acima.”

Nesta ocasião, Lewandowski, evocou:

a) autores complemente díspares, desde a confusão aleatória ao citar Miguel Reale, Konrad Hesse, Deisy Ventura, e o rei da Espanha, Juan Carlos I, e como se isso já não fosse muito, chegou ao cúmulo de afirmar, em um mesmo parágrafo, que sua argumentação se apresentava de forma uníssona em meio a Humberto Ávila, Ronald Dworkin e Robert Alexy;

b) que o embrião também encontra-se protegido com o direito a vida, ou seja, conferiu de modo extensivo a ampliação do conceito jurídico de concepção do direito a vida presente no pacto de San José, que trata expressamente da coibição de penas de morte, aproximando-o do tradicional conceito judaico-cristão de concepção da vida, entendido desde a formação zigótica por meio da clivagem embrionária;

c) a dignidade humana como valor máximo da ordem jurídica brasileira, logo acima da constituição, entre outros anacronismos. Tudo isso para tentar justificar o acréscimo de regulação à lei aprovada no Congresso Nacional que dispõe nesse sentido, controlando ainda mais as pesquisas com células-tronco embrionárias.

O ministro Ricardo Lewandowski, ao pautar suas decisões fundamentadas em valores máximos e éticas homogeneizantes, parece saudosista à época medieval do velho continente, quando uma moralidade hierárquica e totalitária subordinava as demais esferas sociais. Também parece não gostar de confrontar seus enunciados argumentativos, por exemplo, no caso da pesquisa das células-tronco embrionárias, com o argumento de Claus Roxin[5], que defende um tratamento jurídico diferenciado entre a concepção de vida de uma pessoa nascida e de um zigoto em fase embrionária que nem é capaz de sentir por não ter adquirido ainda um córtex cerebral desenvolvido.

III. O que esperar da corte Lewandowski

De fato, a presidência do STF não oferece grandes oportunidades de protagonismo ao ministro que a ocupa. Diferentemente da tradição nos Estados Unidos em que o chief justice, escolhido pelo presidente norte-americano passa a ter um mandato por tempo indeterminado, fica difícil, em apenas 02 anos, exercer uma forte influência teórica ou doutrinária sobre os demais colegas ministros. As experiências de Moreira Alves, que sempre alertava os demais ministros à preservação de precedentes tradicionais do Supremo, e Gilmar Mendes, que difundiu o uso desenfreado da ponderação e proporcionalidade como técnicas de decisão, dificilmente se repetirão com o recatado, educado e discreto min. Ricardo Lewandowski.

Com a aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa, o atual presidente talvez veja uma ótima oportunidade para seguir os preceitos machadianos da teoria do medalhão, ser amigo de todo mundo, concordar com todos os colegas, e posicionar-se apenas em último caso para não arrumar maiores divergências. Se seguir com seu discurso de eficiência institucional, avanços poderão ser percebidos, por exemplo, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, em institutos da repercussão geral, entre outros. Como afirma Rufino do Vale, o prosseguimento com os trabalhos no CNJ preocupados com o sistema prisional, a informatização dos tribunais e os programas especiais voltados para a efetivação do direito à saúde, democratização do acesso à justiça, mediação e arbitragem[6], já seriam de grande avanço.

No entanto, em se tratando do min. Lewandowski, que, em seus votos, dissimula suas preferências pessoais em falsas fundamentações racionais, o discurso de autocontenção em acréscimo as promessas de atuação externa da presidência do STF podem querer ocultar as demandas internas de grande repercussão social que o Supremo possivelmente irá enfrentar durante esses 02 anos. Um deles seria a revisão da decisão do STF na ADPF de nº 153 que preservou a constitucionalidade da Lei de Anistia.

Se o ativismo judicial manifesta-se em um Supremo exasperado e altamente requisitado, a autocontenção pode significar menos um integrante institucional na construção das normas constitucionais.

Talvez, veremos, na corte Lewandowski, um Supremo Tribunal Federal mais omisso na construção do debate público e menos aberto ao julgamento de casos extremamente relevantes como a nova revisão da Lei de Anistia.

 

[1] (Martins: 2011; p. 23, 27, 33 e 36). < http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-023-Artigo_Ives_Gandra_da_Silva_Martins_(O_Ativismo_Judicial_e_a_Ordem_Constitucional).pdf >.

[2] Para uma excelente avaliação da ADI de nº 4277 e ADPF de nº 132, num estudo comparativo com a decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão de mesma temática, Vide. (Martins, Leonardo: 2014; p. 245-279). < http://revistadireito.unb.br/index.php/revistadireito/article/view/26 >.

[3] Há quem pense diferente. Uma boa obra, nesse sentido, Vide. (Campos: 2014). Campos, Carlos Alexandre de Azevedo. “Dimensões do ativismo Judicial do STF”. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[4] Vide. (Rodriguez: 2013; p. 70 e ss). José Rodrigo Rodriguez apresente um pertinente exemplo de falsa fundamentação, a sistemática do argumento de autoridade: “A estrutura textual utilizada na argumentação por autoridade é sempre muito parecida: elabora-se uma tese, de saída, a partir de uma autoridade qualquer (legislação, doutrinador, caso julgado). Em seguida, são invocadas autoridades para corroborá-la, pouco importando a coerência entre elas, ou seja, a coerência entre as leis, casos julgados ou citações de doutrina utilizados. Por fim, é proposta uma solução para o caso como se ela fosse absolutamente óbvia, por ter sido, justamente, sustentada por praticamente ‘todos’, todas as autoridades relevantes sobre o assunto. Uma argumentação que é pura manipulação, no sentido pejorativo da palavra, das fontes do direito.” (Ibid, p. 80-1). Rodriguez, José Rodrigo. “Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro)”. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

[5] (Roxin: 2002; p. 04). < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25456-25458-1-PB.pdf>.

[6] <http://www.conjur.com.br/2014-ago-02/observatorio-constitucional-presidente-supremo-devera-enfrentar-grandes-desafios-gestao>.

 

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