Entre “Juristocracia” e a “Corte para o Um Porcento”: O Supremo Tribunal Federal e a Narrativa da Desigualdade Econômica

Injustiça e Judiciário

via Shutterstock.com

Artigo orginalmente publicado em inglês no Comparative Law Prof Blog

 

Estudos sobre desigualdade apresentam, normalmente, um forte apelo. Seja porque revelam como a natureza humana e a sociedade como um todo estrategicamente se comportam, seja porque talvez nos afetam de alguma forma, somos geralmente receptivos a esse debate. O recente e impressionante livro Capital no Século XXI, escrito pelo economista francês Thomas Piketty, no qual ele “dedica essencialmente à compreensão da dinâmica histórica da riqueza e da renda”[1] é um claro exemplo de quão poderosa e influente pode ser uma tese sobre desigualdade de riqueza e renda. Em tempos de crescente desigualdade em diferentes partes do mundo, esse aspecto é naturalmente ampliado e não é de se estranhar que outras interessantes conexões com esse debate apareçam aqui e ali.

O direito constitucional não é exceção. Na medida em que diretamente afeta o debate sobre a justiça e a distribuição de recursos, vários artigos têm tentado explicar como esse crescimento da desigualdade acarreta sérias consequências no direito constitucional e como as instituições jurídicas se comportam nesses momentos críticos. O recente artigo A Court for the One Percent: How the Supreme Court Contributes to Economic Inequality,[2] de Michele Gilman, assim como o artigo Breaking the Vicious Cycle: How the Supreme Court Helped Create the Inequality Era and Why a New Jurisprudence Must Lead Us Out,[3] de Adam Lioz, seguem esse caminho. O argumento que eles apresentam origina-se da percepção de que a Suprema Corte norte-americana tem claramente promovido desigualdade econômica em diferentes áreas da vida social e “eviscerado proteções fundamentais que impedem os ricos e seus interesses de traduzirem seu poderio econômico diretamente em poder político”.[4] Essa percepção também pode ser transposta para outras realidades constitucionais, especialmente onde a desigualdade social é historicamente uma questão central. De fato, como a desigualdade e as decisões das Supremas Cortes se relacionam entre si é um tema que merece mais estudos analíticos. Porque, no final, isso se refere à própria legitimidade das Supremas Cortes – na medida em que o argumento de proteção das minorias cai por terra -, investigações empíricas e teóricas como tais ganham mais importância.

Aqueles estudos conectando igualdade com as decisões da Suprema Corte norte-americana encontram forte evidência de que os Estados Unidos estão enfrentando um ciclo vicioso no qual, em última instância, o processo democrático é estruturalmente atingido,[5] na medida em que elas estariam “ajudando a proteger uma minoria muito poderosa às expensas da maioria”.[6] Embora não diretamente examinando a Suprema Corte norte-americana,[7] é interessante observar que a tese de Ran Hirschl, em seu brilhante livro Towards Juristocracy, já tenha trazido importantes luzes a essa discussão pela ênfase na “preservação hegemônica auto-interessada”[8] das elites políticas, econômicas e judiciais ameaçadas. Seu diagnóstico tem se provado não apenas correto em relação à constitucionalizarão e ao controle de constitucionalidade e como as elites fazem uso deles, mas também sua conclusão de que esse movimento “tem absolutamente fracassado para promover noções progressivas ou igualitárias de justiça distributiva de um modo significativo”[9] está em consonância, de algum modo, com aqueles estudos acadêmicos mais recentes sobre desigualdade. Além disso, como um resultado natural dessa “preservação hegemônica” das elites, a desigualdade aparece como uma característica estrutural de práticas institucionais extrativas,[10] na medida em que elas se desviam do curso de plena inclusão dos grupos sociais excluídos. Não incluir esses grupos torna-se, assim, uma estratégia de autopreservação e a Suprema Corte, tal como outras instituições políticas e jurídicas, uma ferramenta para fortalecer essa estratégia. O acima mencionado ciclo vicioso é bem retratado nesse ambiente e se torna ainda mais evidente em sociedades onde a desigualdade amplamente prevalece.

Nesse aspecto, o Brasil parece ter de lidar com problemas semelhantes. É bem sabido que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, apesar de sua expansão de renda e de emprego nos últimos anos. Mesmo assim, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2012, enquanto os 10% mais ricos da população absorviam 41,9% de toda a renda, os 10% mais pobres, por sua vez, apenas se apropriavam de 1,1% desse montante.[11] Outro influente estudo revelou que, entre 2006 e 2012, o 1% mais rico absorveu 25% de toda a renda e que uma certa estabilidade na distribuição de renda foi mantida.[12] Além do mais, de acordo com esse artigo, “os ricos são mais resistentes ao declínio da desigualdade do que o resto da população”.[13] A luta entre grupos sociais é, portanto, visível e não é nenhuma surpresa que haja uma forma de “preservação hegemônica” das elites sendo assumida pelo Judiciário e, particularmente, pelo Supremo Tribunal Federal. Muitas conclusões que aqueles estudos acima apresentaram, apesar das diferenças contextuais, se aplicam aqui também. Os mais ricos, que são os mais resistentes à mudança, farão uso das instituições jurídicas como uma forma de “preservação hegemônica”, estabelecendo assim limites às conquistas de outros grupos sociais em direção à inclusão.

Há possivelmente uma forte conexão entre as decisões do Supremo Tribunal Federal e a desigualdade, embora, como acontece nos Estados Unidos, a doutrina majoritária ainda continue afirmando que o papel da Suprema Corte é proteger as minorias e promover justiça distributiva e que a história tem comprovado isso. O diagnóstico que Michele Gilman apresenta de que “o poder judiciário é raramente parte da nartativa de desigualdade econômica, apesar de seu significante impacto”[14] harmoniza-se amplamente com a realidade brasileira. Por exemplo, Gilmar Mendes, um dos mais influentes acadêmicos e Ministro do Supremo Tribunal Federal, categoricamente diz que “possuímos, hoje, um sistema de defesa da Constituição tão completo e tão bem estruturado que, no particular, nada fica a dever aos mais avançados ordenamentos jurídicos da atualidade”[15] e isso particularmente devido a sua capacidade de proteger os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. O subsequente argumento em favor da postura mais ativista do Supremo Tribunal Federal, como tem se mostrado real nos últimos anos, torna-se facilmente aceito e repetido pela doutrina majoritária. Porém, na medida em que análise empíricas começam a aparecer, essa aura mágica ao redor as atividades da Suprema Corte criada pela doutrina entra em conflito com a realidade. Especialmente, a narrativa da desigualdade econômica possui um papel interessante e significativo contra esse discurso. A questão é: tem a Suprema Corte realmente protegido minorias e promovido justiça distributiva? Ou, ao contrário, tem ela incentivado a desigualdade ao proteger os interesses de grupos sociais hegemônicos contra qualquer possibilidade de destruição criativa de seu status quo?[16]

Ao colocar lado a lado a doutrina majoritária e essas análise empíricas, a segunda questão parece, ao menos à primeira vista, mais precisa. Isso obviamente não significa que o Supremo Tribunal Federal não tenha protegido minorias e promovido justiça distributiva em nenhuma hipótese. Contudo, um estudo recente desenvolvido na Universidade de Brasília[17] concluiu que, ao menos no controle concentrado de constitucionalidade, de 1988 a 2012, apenas 11% de todos os casos julgados procedentes foram, de fato, no campo dos direitos fundamentais, mas, mesmos entre esses, em torno de 60% de todas as decisões foram relacionadas, de algum modo, a interesses corporativos. No sistema difuso de constitucionalidade, pesquisas ainda têm de ser realizadas, mas já é visível que, em áreas específicas de mercado e corporações, sindicatos, direito do trabalho, saúde, tributos e propriedade, apenas para indicar alguns, se pode encontrar uma tendência a favorecer os interesses do capital. Portanto, o argumento de que, no Brasil, “possuímos, hoje, um sistema de defesa da Constituição tão completo e tão bem estruturado” apenas revela um lado da história, que precisa ser desafiado e revisitado.

O direito constitucional comparado depara-se com o dilema de examinar os movimentos das Supremas Cortes em direção ao ativismo, de um lado, e suas práticas de promoção da desigualdade, de outro. Afinal, no centro desse debate se encontra o argumento de sua legitimidade. Mas também mostra o comportamento estratégico de grupos sociais que, de algum modo, fazem uso das instituições jurídicas para manter intocada sua zona de conforto. Como Gilman diz, isso tem um “significante impacto”. Em anos de “Cortes para o Um Porcento” e “Juristocracia”, essa narrativa de desigualdade econômica e a narrativa das Supremas Cortes têm de efetivamente trabalhar em conjunto.

 

[1] Thomas Piketty, Capital in the Twenty-First Century vii (The Belknap Press of Harvard University Press. 2014).

[2] Michele Gilman, A Court for the One Percent: How the Supreme Court Contributes to Economic Inequality, Utah Law Review, 1 (2014).

[3] Adam Lioz, Breaking the Vicious Cycle: How the Supreme Court Helped Create the Inequality Era and Why a New Jurisprudence Must Lead us Out The Changing Landscape of Election Law, 43 Seton Hall L. Rev. 1227, 1231 (2013).

[4] Id.

[5] Gilman, Utah Law Review, 1 (2014).

[6] Id.

[7] O foco do estudo de Hirschl são as experiências constitucionais do Canadá, de Israel, da Nova Zelândia e da África do Sul

[8] Ran Hirschl, Towards Juristocracy : The Origins and Consequences of the New Constitutionalism 11-12 (Harvard University Press. 2004).

[9] Id., p. 14

[10] Vide Daron Acemoglu & James A. Robinson, Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty   (Crown Business. 2012).

[11] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira 2013. Rio de Janeiro, 2013, p. 173. Available at: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2013/ (Accessed December, 17th).

[12] Vide Medeiros, Marcelo; Souza, Pedro H. G. F.; Castro, Fabio Avila. O Topo da Distribuição de Renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares, 2006- 2012, p. 13. (August 14, 2014). Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=2479685

[13] Id., p. 13, 24

[14] Gilman, Utah Law Review, 75 (2014).

[15] Gilmar Ferreira Mendes; Inocêncio Mártires Coelho; Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional 208 (Saraiva, 2009) [Translation]

[16] Vide Acemoglu & Robinson, Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty. 2012.

[17] Vide Costa, Alexandre and Benvindo, Juliano Zaiden, A Quem Interessa o Controle Concentrado De Constitucionalidade? – O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais (Who is Interested in the Centralized System of Judicial Review? – The Mismatch between Theory and Practice in the Protection of Basic Rights) (April 2014). Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=2509541 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2509541

Fique atualizado!

Cadastre seu e-mail e receba todos os nossos artigos!

,

  • Graciela Oliveira

    Concordo com a sua exposição professor Benvindo, no entanto, gostaria de incluir um adendo: a desigualdade de gênero que infelizmente ainda perdura fortemente no Brasil, principalmente com relação à participação econômica e a capacitação política femininas.

    Uma prova deste fato é a desigualdade salarial para trabalhos similares ou até iguais exercidos por mulheres (no caso dos homens que exercem o mesmo trabalho só que com ganhos bem superiores)!

    E na política a situação ainda é pior, pois no Congresso Nacional temos um reduzido número de mulheres, inclusive o Brasil possui uma das menores taxas de representatividade feminina no mundo. Sem falar que quando a mulher é nomeada para alguma pasta política geralmente são as mais light, servindo mais para efeito simbólico.

    Talvez aí professor haja uma certa lacuna do poder Judiciário e porque não do próprio STF em ter a coragem de atribuir a máxima eficácia aos dispositivos constitucionais de 1988.

    Uma sugestão? Talvez cotas em comitês ou conselhos executivos para mulheres, como os que foram criados na Alemanha.

Powered by WordPress. Designed by Woo Themes