Crí­tica constitucional » Crítica Constitucional http://www.criticaconstitucional.com Mon, 26 May 2014 06:48:18 +0000 pt-BR hourly 1 http://wordpress.org/?v=3.9.1 Do Subsídio ao Teto: a PEC 63/2013 e o protagonismo judicial remuneratório http://www.criticaconstitucional.com/do-subsidio-ao-teto-a-pec-632013-e-o-protagonismo-judicial-remuneratorio/ http://www.criticaconstitucional.com/do-subsidio-ao-teto-a-pec-632013-e-o-protagonismo-judicial-remuneratorio/#comments Sat, 24 May 2014 23:47:14 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=772 Douglas Zaidan

Doutorando em Direito/UnB, pesquisador visitante na Universidad Pompeu Fabra (Barcelona)

Flávia Santiago Lima

Doutora em Direito/UFPE

Romper com uma longa tradição de privilégios numa democracia não é tarefa fácil. Porém, em determinados contextos exige um esforço quase inalcançável fazer com que os do andar de “cima” sujeitem-se às regras, muitas delas criadas por eles mesmos.

No Brasil, a relação entre estatuto institucional, estrutura corporativa e as conveniências remuneratórias dos titulares de poder encontra no Poder Judiciário um excelente campo de investigação e crítica, ofuscado pelas constantes menções aos privilégios dos membros de outros poderes e seus servidores.

A magistratura brasileira é numerosa, culturalmente heterogênea e exerce sua atividade por todo o vasto território nacional, estando distribuída em conformidade com um complexo sistema de distribuição de competências – dos quais se destaca o critério federativo. Para reduzir ou minimizar as distinções, tem-se uma disciplina uniforme da organização da carreira, a LOMAN; a unidade do modo de recrutamento, o concurso público; e o estabelecimento de um controle externo administrativo e disciplinar centralizado, o CNJ.

As operações a que esse modelo tem se sujeitado, contudo, parecem  não impedir a formação daquilo que Antonie Garapon chamou de um “novo elitismo liberto de qualquer controle democrático”[1], ao alertar para o risco de que o funcionamento aristocrático da justiça pode muito bem evoluir para a organização corporativa do poder em detrimento da cidadania, o que vem ao encontro de práticas arraigadas em nossa cultura bacharelesca.

Se aproximarmos esse viés sobre a relação entre orçamento público e o regime de remuneração dos magistrados brasileiros, fica evidente a dificuldade de revisão de práticas históricas e privilégios arraigados à luz dos controles democráticos sobre o gasto público. E, nesse sentido, enfraquece a discussão em torno do papel de garantia do Estado Democrático de Direito exercido pelo Judiciário, quando seus membros tentam, pelas mais diversas vias, afastar a aplicação do subsídio e do limite constitucional, transformando o  discurso sobre o acesso à justiça dos mais pobres numa piada de péssimo gosto.

O exemplo mais recente sobre essa relação está na PEC n° 63/2013, apresentada pelo Senador Gim Argello (PTB/DF), que propõe o restabelecimento dos quinquênios (o acréscimo de 5% sobre o subsídio a cada cinco anos de serviço), a título de “parcela indenizatória de valorização”, como retribuição à permanência na função de magistrado ou membro do ministério público. Segundo dados levantados pelo jornal Estado de São Paulo, o impacto da PEC elevará a remuneração dos ministros do STF, que chegará a R$ 39.774,04 por mês (em valores atuais), a de desembargadores a R$ 35,9 mil a de juízes federais titulares a R$ 34,1 mil e dos substitutos a R$ 32,4 mil. Ou seja, todos passarão a ganhar acima do teto constitucional que hoje é de R$29,4 mil.

A partir de dados extraídos do relatório da Comissão Europeia sobre a Eficiência da Justiça/CEPEJ[2], com o objetivo de verificar se a remuneração dos magistrados e membros do ministério publico em atuação no mais alto escalão da justiça brasileira (que recebem o teto constitucional ou algo próximo a ele) está distante de seus colegas-equiparados de países europeus, destacamos os salários anuais em euros de cinco deles: França, Alemanha, Portugal, Espanha e Suécia:

País Juízes da Suprema Corte/Corte Constitucional ou Corte de Apelação em último grau Membro do Ministério Público junto à Suprema Corte/Corte Constitucional ou Corte de Apelação em último grau
França € 113.478 € 113.478
Alemanha € 73.679 € 73.679
Portugal € 85.820 € 85.820
Espanha € 111.932 € 111.932
Suécia € 91.600 € 69.318

Pois bem, contabilizadas as treze remunerações anuais (incluído o décimo terceiro salário, mas excluídas as férias), um ministro ou subprocurador da República que atualmente receba o teto constitucional, teria sua remuneração anual fixada em R$382.200,00 ou o equivalente a € 126.138,61. Um subsídio maior do que o pago nos cinco países comparados.

Porém, a situação torna-se mais absurdamente despropositada quando comparamos o valor que o subsídio poderia chegar se a PEC n° 63/2013 fosse aprovada. Nesse caso, juízes e procuradores que recebem o teto passariam a ganhar R$517.062,52 anuais, ou seja, €170.647,69. Um completo absurdo para um país que tem o PIB/per capita de U$12.340, valor muito inferior ao de todos os países comparados[3].

A PEC constitui, em verdade, a manifestação mais eloquente de uma série medidas adotadas pelos tribunais há alguns anos, cujas consequências jurídicas são semelhantes. Seu diferencial é a pretensão de alteração da própria norma constitucional para excepcionar uma determinada categoria das limitações atinentes aos demais membros de Poder e servidores em geral.

O emprego das expressões “indenização” e “auxílio” já é, contudo, uma tendência e se presta a majorar os subsídios dos juízes. A PEC surge, assim, após vários outros tribunais estabelecerem o pagamento de “indenizações”, muitas delas sob as lentes do Conselho Nacional de Justiça e do próprio Supremo Tribunal Federal.

É o caso, por exemplo, da decisão do CNJ que em 03/06/2013 suspendeu o pagamento retroativo de auxílio alimentação dos tribunais de justiça da Bahia, Pernambuco, Roraima, Sergipe, Espírito Santo, Maranhão, São Paulo e Pará. Porém, o mesmo Conselho, que acertadamente suspendeu a despesa com o retroativo, em 2011 editou a corporativa Resolução n. 133, já tratada aqui no blog, que autoriza o pagamento do auxílio alimentação. Dita resolução foi impugnada pela ADIn n. 4882/PE da OAB e está sob o pedido de vista do ministro Dias Toffoli, mas já conta com os lamentáveis votos pela improcedência dos ministros Teori Zavascki e Luiz Fux, após o voto pela declaração de inconstitucionalidade formal do relator, ministro Marco Aurélio.

Vantagens remuneratórias camufladas por indenizações também são vistas no auxílio transporte do TJMT, em que desembargadores com direito ao uso de veículos preferiam deixá-los na garagem do tribunal e receber 15% a mais em seus contracheques; no projeto de lei complementar do TJMG que contém “previsão do pagamento de diárias e de despesas de transporte independentemente de regulamentação; substituição do reembolso das despesas de transporte e mudança pelo pagamento equivalente a um subsídio, a título de custeio de despesas de mudança, em casos de remoção e promoção para outra comarca; instituição de auxílio anual no valor de metade do subsídio mensal para aquisição de livros, publicações digitais e material de informática; instituição de auxílio-saúde, auxílio-alimentação e gratificação mensal pelo exercício de direção de foro e pela participação em turma recursal; e previsão de regulamentação do auxílio-moradia por resolução do TJMG”; e ainda  no absurdo projeto de lei encaminhado pelo TJRJ para autorizar o pagamento de auxílio moradia de 18% para todos os seus juízes, o que acrescentaria ao subsídio R$5.400,00 ao mês, com o injustificado efeito retroativo a 10 anos, que representa o impacto de quase meio bilhão de reais.  

Um desavisado que se deparasse com essas absurdas reivindicações poderia até pensar que os juízes no Brasil recebem menos que um salário mínimo, afinal para o mínimo a Constituição (art. 7°, IV) já estabelece que seja capaz de atender “a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”.

Mas o atual subsídio dos juízes federais brasileiros é de R$23.997,19 (conforme o último edital do concurso para o TRF2), o que representa pouco mais de 33 vezes o valor do salário mínimo nacional (R$724,00); 13,44 vezes mais o valor do que a média mensal dos trabalhadores da iniciativa privada (R$1.785,20), e 7.67 vezes a média dos salários do setor público (R$3.127,00), segundo dados do IBGE para o mês de abril.

Na busca de pretensões remuneratórias, parece válido ressignificar até mesmo o léxico “indenização”. Se o termo “indenizar” quer dizer compensar ou reparar um dano sofrido, poderíamos considerar que ser juiz ou membro do ministério público no Brasil é, de fato, uma atividade danosa, arriscada, e porque não insalubre e perigosa. Mas todos estes aspectos não são observados na determinação dos seus subsídios? E os riscos inerentes à atividade realmente aumentam com o passar dos anos, justamente quando seus membros são mais experientes e atuam em localidades mais convenientes aos seus interesses?

A verdade é que estamos criando uma espécie de Frankenstein jurídico, uma “parcela indenizatória” que, nos termos propostos, não restitui nem repõe nada, mas apenas mantém a situação como ela está: com os magistrados e membros do MP no topo da cadeia remuneratória e, progressivamente, distanciando-se das demais carreiras, das quais já se encontram em patamar muito superior. Tampouco a parcela representa alguma gratificação por eficiência ou produtividade, também incompatíveis com o regime de subsídio. Na proposta, a manutenção de profissionais experientes é apresentada apenas como benefício para o sistema de administração de justiça, mas em nenhum momento parece contabilizar que o ganho de experiência auferido com o tempo na atividade reverte-se também, e especialmente, para os seus agentes. E estes ganhos vão além do incremento do subsídio decorrente das promoções, mas reverberam nas lotações, número de servidores e outros fatores relevantes para o exercício das atividades cotidianas.

É de se destacar, ainda, o fato de que estes agentes percebem, desde o ingresso nas respectivas instituições, subsídios elevados. E esta afirmação é valida sob qualquer parâmetro: seja no serviço público ou na iniciativa privada, ainda que considerados aspectos como poder aquisitivo e outros, como fica evidenciado quando em comparação com a remuneração daqueles mesmos países[4] (substancialmente menos desiguais que o Brasil), vejamos:

País Juízes em início de carreira Procuradores em início de carreira
França € 40.660 € 40.600
Alemanha € 41.127 € 41.127
Portugal € 35.699 € 35.699
Espanha € 47.494 € 47.494
Suécia € 52.587 € 52.290

No Brasil, um juiz federal em início de carreira recebe em um ano[5] a quantia de R$311.963,47 ou €102.958,24, quase o dobro do seu colega sueco, o mais bem pago entre os cinco países comparados.

Claro que há uma série de variáveis que precisam ser contempladas numa comparação entre as remunerações de juízes e procuradores brasileiros e europeus, mas os dados indicam que essas carreiras já têm uma sobrevalorização fora do comum no Brasil.

Ou seja: aqueles que usufruem de alta remuneração no início da carreira, próxima ao teto constitucional –– um dos grandes atrativos dos que pretendem ingressar em seus quadros – parecem querer manter esta situação ou acentuá-la, em detrimento das previsões constitucionais aplicáveis a todos os demais agentes públicos.

Se observarmos mais precisamente não a remuneração, mas a alocação orçamentária para manter o Judiciário numa comparação entre o Brasil e países da União Europeia, a exemplo do estudo recentemente publicado pelo Grupo de Pesquisa em e-Justiça da UFPR[6], também verificamos o quão alto é o custo do acesso à justiça brasileira.

Como aponta a pesquisa mencionada, no ano de 2010 o Judiciário brasileiro custou o equivalente a 1,12% do PIB (R$41 bilhões), o que resulta numa despesa média de U$127,46 por habitante. Já a média da despesa dos 40 países da União Europeia no mesmo ano foi de U$54,95 (quantia inferior à metade da brasileira). Quando comparado o percentual relativo ao PIB do gasto com o Judiciário, o Brasil supera todos os países avaliados pelo Conselho da Europa, que indica ser em Montenegro a nação com o maior índice (0,81% do PIB).

No entanto, na justificativa que acompanha a PEC n. 63, após os elogios programa nacional de valorização da magistratura, destaca o seguinte: “Este processo já não é sem tempo, segue no esteio da Reforma Administrativa aprovada em 3 de junho de 1998, com a publicação da Emenda Constitucional n. 19. Entre os inúmeros avanços trazidos por esta, encontra-se a fixação, sob forma de subsídio, da remuneração dos membros de Poder, entre outras autoridades de escalão superior da esfera federal, estadual, distrital e municipal, dando transparência a esse aspecto historicamente tão sensível quanto desprezado, referente ao modo de retribuição dos servidores públicos de todos, a partir dos cargos e carreiras, bem como escalões, mais essenciais e representativos dos Poderes da República, como determina o art. 39, parágrafo 4, da Carta Magna.”   

No mesmo sentido, é o parecer do Senador Vital do Rêgo (PMDB/PB), aprovado dia 21/05/2014, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado: “é inegável a necessidade da criação de mecanismos que permitam, de um lado, retornar a atratividade das carreiras da magistratura e do Ministério Público e, de outro, enfatizar a sua posição institucional peculiar.” E, mais adiante, arremata: “Essa posição sui generis tem, necessariamente, reflexos em sua posição remuneratória, inclusive como garantia do exercício do seu papel institucional diferenciado”.

A proposta e o parecer incorporam muito bem o sentido de como membros da magistratura e do ministério público autocompreendem a distinta nobreza de suas funções, no caso, em estritos termos remuneratórios, ainda que para isso precisem desprezar os dados sobre a situação global de remuneração do serviço público ou o PIB/per capita do país.

Os argumentos partem de considerações gerais sobre os poderes, mas destaca um papel institucional diferenciado, a justificar um estatuto distinto. Para alcançar estes objetivos, todos os meios são válidos: medidas administrativas supostamente amparadas na autonomia financeira e administrativa, regulamentos gerais de duvidosa constitucionalidade e até, em ultimo caso, a reforma da constituição, através de emenda acompanhada de intenso lobby das associações, para estabelecer exceção à norma que constitui empecilho às pretensões encartadas.

Se aprovada a PEC, sua compatibilidade com os princípios da separação de poderes, igualdade, moralidade e outros certamente será objeto de questionamentos perante o Supremo Tribunal Federal, que estará na confortável posição de decidir, em último caso, sobre matéria de interesse de seus membros. Aliás, o Presidente da instituição, Min. Joaquim Barbosa, já se mostrou favorável à alteração, conforme amplamente divulgado.

Nesta hipótese, interessados também veriam o campo de investigação ampliado, uma vez que posteriormente à aprovação da PEC se estabeleceria uma interessante corrida: os demais membros de poder e carreiras do serviço público disputando o privilégio de se afastar das regras do teto e do subsídio como corolário do seu prestígio.

Ainda que não promulgada, a PEC já cumpriu uma missão: explicitar as relações sociais e de poder estabelecidas por uma instituição que, mesmo sob a égide da constituição, mantém uma postura bacharelesca e aristocrática ao enxergar o cargo público como propriedade privada, qualidade que os distingue da ralé ou dos descamisados. Aliás, esse foi o termo utilizado há pouco tempo por um subprocurador da República em apoio à ação do pelo atual Procurador-Geral ao defender os vôos em primeira classe para seus pares.

No contexto de um poder em que a transparência ainda engatinha e que conserva práticas orientadas por critérios nada democráticos em relação ao pagamento de seus membros, as críticas não raras vezes são respondidas com o chauvinismo: “estude e passe no concurso, foi o que eu fiz”. Uma resposta pouco supreendente diante do nosso velho patrimonialismo, exatamente aquele que autoriza pôr em jogo outros bens jurídicos, caso não atendidas as exigências sobre os benefícios a que alguns julgam fazer jus.


[1] GARAPON, Antonie (1996). O Guardador de Promessas. Lisboa: Instituto Piaget, p.  60.

[2] Apesar de a publicação ter ocorrido em marco/2013, os dados apurados sobre a remuneração dos juízes e membros do ministério publico referem-se ao ano de 2010. Porém, considerando a pequena variação dos reajustes no período, consideramos que os dados ainda estão aptos à uma comparação.

[3] Segundo os dados do FMI para 2013, o PIB/per capita dos países mencionados são os seguintes: França – U$35.942; Alemanha – U$39.993; Portugal – U$23.185; Espanha – U$30.620, e Suécia – U$42.037.

[4] Dados extraídos do relatório da Comissão Europeia sobre a Eficiência da Justiça/CEPEJ, publicado em março/2013, com dados sobre a remuneração apurada em 2010.

[5] Tomado como referência o subsídio de R$23.997,19, indicado no edital do TRF 2, incluindo-se o décimo terceiro e excluindo-se as férias.

[6] Trata-se de uma análise com farto material empírico que compara o relatório do Justiça em numeros, do CNJ, com relatório produzido pela European Comission of Efficiency Justice – CEPEJ, cujas conclusões estão em SEBERNA, WIVIURKA, MONTEMEZZO & BARBOZA (2013). Justiça em Números: uma análise comparativa entre os sistemas judiciais brasileiro e de países europeus. Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico. n. 8, p. 73-92.

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“Diálogo institucional” ou “business as usual”? STF, seletividade decisória, interesses econômicos e a copa do mundo da FIFA http://www.criticaconstitucional.com/dialogo-institucional-ou-business-as-usual-stf-seletividade-decisoria-interesses-economicos-e-a-copa-do-mundo-da-fifa/ http://www.criticaconstitucional.com/dialogo-institucional-ou-business-as-usual-stf-seletividade-decisoria-interesses-economicos-e-a-copa-do-mundo-da-fifa/#comments Mon, 12 May 2014 12:05:21 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=762 “Diálogo institucional” ou “business as usual”?

 STF, seletividade decisória, interesses econômicos e a copa do mundo da FIFA

 

                                  Gilberto Guerra Pedrosa (Mestrando em direito na UnB) e

         Pablo Holmes (mestre em direito pela UFPE e doutor em sociologia

pela Universidade de Flensburg, Professor de Teoria Política na UnB)

Na primeira semana de maio, o Supremo Tribunal Federal decidiu acerca dos questionamentos feitos à constitucionalidade da Lei Geral da Copa pelo Procurador Geral da República na ADI n° 4976. Em sua decisão, o STF salientou a importância do consenso institucional entre os poderes da república (Executivo, Legislativo e Judiciário) acerca de matérias políticas controversas como um dos parâmetros de julgamento da constitucionalidade e, ao final, decidiu a favor da constitucionalidade dos dispositivos legais.

Segundo entendemos, revela-se nessa decisão a emergência de um  discurso constitucional inspirado na ideia de que o arranjo de poderes deve funcionar na forma de um “diálogo institucional” entre os atores constitucionalmente relevantes, em nome da preservação e alargamento do regime democrático. [1]

Como costuma acontecer entre nós, discursos constitucionais da moda podem servir menos para aperfeiçoar os mecanismos da jurisdição constitucional e mais para legitimar interesses particularistas. Observando o caso da ADI 4976, a sensação clara é a de que o suposto “diálogo consensual” entre os poderes, usado na argumentação da corte para justificar o julgamento, serviu, na verdade, para legitimar uma submissão nada “democrática” das instituições de direito público do ordenamento jurídico brasileiro aos interesses econômicos da FIFA, suas subsidiárias e daqueles que sempre costumam ser beneficiados em um país tão desigual e excludente como o Brasil.

 

A FIFA como ator institucional?

Os interesses econômicos da Fifa, uma pessoa jurídica de direito privado constituída originalmente na Suiça, estão sensivelmente relacionados à decisão na ADI de nº 4.976. Ao contrário do que pode parecer, desde o ponto de vista constitucional, tratou-se na ação não apenas da constitucionalidade de normas internas da ordem jurídica brasileira, mas da relação entre nossa ordem constitucional a e os objetivos, sobretudo econômicos, da FIFA, uma superorganização transnacional com poder para pressionar e constranger Estados nacionais.

Claro que a copa tem uma conexão direta com a identidade nacional e será um megaevento capaz de divertir e alegrar a população. Ademais, ela pode ter uma dimensão política que transcende o simples entretenimento, significando uma projeção simbólica das potencialidades culturais, econômicas e sociais brasileiras para o mundo: uma expressão do soft power brasileiro fundado na diversidade étnica e cultural, no espírito de cordialidade e alegria nacionais. Longe de representarem apenas clichés, a imagem política de um país pode se traduzir de maneira concreta na geopolítica das nações, inclusive com possíveis ganhos econômicos traduzíveis em investimentos.

E, de fato, os argumentos econômicos se tornaram os mais importantes a justificar tudo que diz respeito à Copa do Mundo do Brasil de 2014. Para o bem, mas sobretudo para o mal.

Segundo a Consultoria Ernst Young, em estudo feito em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, as olimpíadas e a copa do mundo juntas gerariam mais de 6 milhões de empregos diretos e indiretos entre 2010 e 2014. Apenas a copa do mundo significaria investimentos da ordem de 142 bilhões de reais, acrescentando 63,8 bilhões à renda nacional. E segundo estimativas do governo central, ela renderia um incremento de até 10 bilhões na arrecadação tributária, nos diversos níveis federativos.

Bom para a economia? Melhor ainda para a FIFA. Já em 2013, a federação bateu todos os seus recordes anteriores de arrecadação devido à organização do torneio. Segundo o secretário-geral da entidade, Jérome Valcke a previsão de faturamento da Fifa com a copa realizada no Brasil é de US$ 4 bilhões só em receita comercial. Ela seria, assim, a competição mais rentável da história, gerando para a FIFA U$S 1,7 bilhões a mais que a copa realizada na África do Sul de 2010.

Os números bilionários se tornam tão poderosos que eles eliminam quaisquer preocupações com os efeitos destrutivos que os imperativos econômicos podem ter sobre as instituições jurídicas e políticas. Presume-se que tudo que gere crescimento, e lucros, é necessariamente benéfico para o conjunto da sociedade, não importando a que custo as cifras sejam produzidas: seja o desrespeito a direitos individuais e coletivos e a procedimentos democráticos ou a produção de instabilidades institucionais por meio de um verdadeiro regime jurídico de exceção para satisfazer os interesses de uma entidade privada.

Os incontáveis relatos de violações de direitos de populações locais graças aos esforços monumentais para a realização do evento são diversos. Eles vão desde a remoção forçada ou por meio de pífias indenizações a moradores do entorno de áreas a serem utilizadas de alguma forma para o torneio, até a repressão violenta de manifestações contra a competição. Várias violações foram objeto de denúncia feita por organizações não-governamentais e pela relatoria da ONU para o direito à moradia durante a 23° reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os custos que talvez sejam mais difíceis de mensurar dizem respeito, porém, ao próprio funcionamento das instituições. Como condição para a realização da Copa do Mundo no país, a FIFA impôs ao Estado brasileiro uma série de constrangimentos, muitos deles completamente antagônicos ao funcionamento normal das estruturas políticas e jurídicas nacionais. Essas condições de exceção se materializaram nos diversos marcos legais da copa, que criaram uma verdadeira ordem jurídica paralela a regular a preparação e a realização do evento, assim como o regime de responsabilização por quaisquer danos ou violações que pudessem ser imputadas a FIFA durante e após o torneio.

Por isso, a ADI 4976 não tratava apenas da regulação recíproca entre os poderes da República Brasileira. Ela dizia respeito a uma tensão mais profunda entre racionalidades sociais distintas. Uma disputa entre os imperativos econômicos, representados pelas pretensões de eficiência na organização do evento impostas pela FIFA e materializadas em seu regime jurídico de exceção, e entre os imperativos democráticos da ordem constitucional. Dar nomes aos bois é muitas vezes importante, para que possamos saber como caminha a boiada. E, no caso dessa triste decisão do tribunal, parece que a boiada marchou firmemente para pisar questões constitucionais fundamentais em nome de vantagens econômicas cujo significado pode nem sempre ser exatamente proveitoso para o conjunto da população.

 

A economia contra a democracia: a FIFA e o regime jurídico de exceção da copa

A realização da Copa do Mundo de 2014 criou, desde o ponto de vista institucional, uma verdadeira ordem paralela em relação à ordem constitucional brasileira, com repercussões nas mais diversas esferas de direitos.

No Congresso Nacional, o pedido de urgência foi cumprido com êxito para dar maior celeridade e garantir  a aprovação de todas as exigências legislativas estabelecidas pela FIFA. A Lei 12.350/10 dispunha sobre diversas isenções tributárias (IRPJ, PIS, COFINS, IPI, IOF etc) concedidas à entidade, as quais atingiriam quase R$ 560 milhões, e um regime diferenciado de tributação para empresas envolvidas nas reformas e construções de estádios de futebol. A Lei 12.462/11 estabeleceu um regime excepcional de licitações e contratos para obras e serviços ligados a copa das confederações, copa do mundo e jogos olímpicos. E a Lei 12.663/12, a “Lei geral da Copa”, que transformou a FIFA em um entidade jurídica praticamente soberana, com poderes e prerrogativas que a colocam acima da constituição federal.

A copa da Fifa também estimulou de forma inusitada ações do Executivo e do Judiciário.

Em outubro de 2013, a súmula 502 do STJ afastou qualquer possibilidade de entendimento capaz de flexibilizar o tipo penal de crime autoral, adequando-o perfeitamente aos tipos estabelecidos pela Lei Geral da Copa (Capítulo VIII) para a proteção de direitos autorais da Fifa. Desse modo, ficava estabelecido que os direitos de propriedade intelectual da FIFA se distinguem dos direitos de propriedade de quaisquer outros cidadãos ou empresas, nos termos da Lei 9.610/98 (por sinal já resultada de imposição graças às negociações da OMC). E, em dezembro de 2013, a portaria normativa de nº 3.461 do Ministério da Defesa denominada “Garantia da Lei e da Ordem”, estabeleceu um regime excepcional para o “controle e distúrbio do ambiente urbano”.

A agilidade como esses mecanismos foram aprovados no congresso e incorporados em diversos planos institucionais só não é mais surpreendente que a forma acrítica como as mais absurdas exceções foram incluídas no ordenamento jurídico de modo a dar um status especial à FIFA. O Estado brasileiro parece ter se comportado, nesse processo, menos como uma organização democrática, em que procedimentos deliberativos são fundados na igualdade jurídica e política e mais como um sócio-investidor, numa busca interessada sem limites por otimizar os interesses econômicos de seus parceiros numa empresa lucrativa.

Os conflitos entre os imperativos econômicos de eficiência e lucratividade com as estruturas democráticas de deliberação e os mecanismos constitucionais de regulação jurídica parecem ser, aliás, algo que acompanha a realização desses megaeventos esportivos por organizações transnacionais privadas.

A dificuldade de conciliar a “eficiência” organizacional com os constrangimentos institucionais de um Estado de Democrático de Direito foram, aliás, objeto de já famosos comentários de dirigentes da FIFA. O secretário-geral da entidade, Jérôme Valcke, afirmou, por exemplo, ser mais fácil organizar copas do mundo em países com menos democracia. E ao fazer uma comparação entre Rússia e Alemanha, ele afirmou que “quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, assim como Putin poderá ser em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”.

O que, num primeiro momento, pode parecer uma ode (conhecida entre nós) à eficiência do mercado, em detrimento das implicações um tanto “populistas” da democracia, se desfaz quando consideramos quais as exigências feitas pela FIFA, e materializadas no regime jurídico de exceção da Copa, e como essas exigências rompem com os fundamentos da igualdade jurídica do nosso ordenamento constitucional. Como sempre, a ideia de que a eficiência do mercado redime a sociedade de quaisquer considerações políticas sobre a distribuição dos recursos e sobre os limites jurídicos dos ganhos frente aos direitos individuais e coletivos de terceiros parece ter um e único motivo: o benefício particularista de interesses, tornados invisíveis.

Diversas entidades não-governamentais e internacionais tem alertado, exatamente, que a distribuição dos benefícios trazidos pelo evento parece se dar de modo tão desigual, que restam duvidosos se seus resultados podem ser vantajosos para o conjunto da sociedade. O Observatório das Metrópoles além de vários pesquisadores em diversas cidades sede tem denunciado a forma violenta e muitas vezes ilegal como moradores tem sido removidos para a realização das obras da copa. E diversos urbanistas tem chamado a atenção para os possíveis impactos nocivos trazidos às cidades pelo torneio.

Outras cidades e Estados do mundo já vem percebendo claramente que as mega-cifras relacionadas aos megaeventos não são nenhuma garantia de que eles representem um retorno social digno de ser comparado aos transtornos e constrangimentos à ordem democrática local. No início deste ano, a cidade de Estocolmo declinou de sua candidatura para sediar as olimpíadas de inverno. E um dos políticos locais justificou assim a desistência: “Quando se trata de custos deste calibre [3,6 bilhões de reais], os cidadãos que pagam impostos exigem de seus políticos mais do que previsões otimistas e boas intuições [argumentação do Comitê Olímpico sueco]. Não é possível conciliar um projeto de sediar os Jogos Olímpicos com as prioridades de Estocolmo em termos de habitação, desenvolvimento e providência social”

É verdade que a copa pode trazer benefícios. Mas a única forma de fazer com que esses benefícios possam justificar os tremendos esforços do poder público é insistir na garantia de que a realização dos eventos se adeque ao ordenamento jurídico, sem que sejam realizadas violações aos princípios fundamentais da ordem constitucional democrática.

 

A ADI 5976 e a decisão do Supremo Tribunal Federal

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 4976, cujo relator foi o min. Ricardo Lewandowski, questionava entre outras coisas, a responsabilização objetiva da união por quaisquer prejuízos causados pela FIFA a terceiros e em casos fortuitos, durante a realização da Copa; o pagamento de prêmios e auxílios mensais a jogadores das seleções brasileiras campeãs em copas passadas e a isenção, oferecida às custas da união, à Fifa e suas subsidiárias do pagamento de quaisquer taxas e custas judiciais.

A ação questionava, assim, a constitucionalidade de apenas alguns dos diversos dispositivos que estabeleceram o regime jurídico da copa, e que garantiam à FIFA uma série de prerrogativas completamente excepcionais.

O STF decidiu, com o único voto contrário do Min. Joaquim Barbosa, que todos esses dispositivos eram constitucionais. E, para justificar a decisão, recorreu a uma interessante argumentação, que parece ter feito uso de nova moda teórica no discurso constitucional brasileiro.

Em seu voto, o min. relator Lewandowski ressaltou que a isenção concedida à Fifa e suas subsidiárias quanto às custas e despesas judiciais não contrariam o princípio da igualdade presente na Constituição, que se manifesta no princípio da isonomia tributária. Para ele, a própria CF prevê a possibilidade de isenções fiscais, em seu § 2º, art. 150 da Constituição Federal. Mais importante seria o efeito político-econômico do evento, dotado “de inegável potencial de gerar empregos e atrair investimentos”, que configuraria “um interesse constitucionalmente relevante”.

Em relação à responsabilização objetiva da união por possíveis danos causados pela FIFA ou suas subsidiárias a terceiros, o ministro alegou que o art. 37 da CF não esgota o tema da responsabilidade objetiva, visto que há outras previsões legais, como no caso de acidentes nucleares, em que se aplicaria a teoria da responsabilidade objetiva integral, sem ser necessária a verificação de nexos de causalidade entre uma ação e o dano. Aqui, restou inquestionado o fato de que a lei oferecia à FIFA e suas subsidiárias, cujas atividades tem finalidade visivelmente econômica um grau de irresponsabilização incomparável em relação a qualquer outro ator privado (ou mesmo atores públicos) em território nacional.

De modo geral, a justificativa dos ministros, seguindo a posição do relator, variou entre um extremo pragmatismo consequencialista acerca dos supostos benefícios econômicos da copa e uma consideração acerca de um suposto consenso político institucional, dos poderes da República, acerca do “pacto” firmado entre o Estado brasileiro e a FIFA em torno da realização do torneio.

O ministro Barroso, por exemplo, argumentou, a contrario sensu de suas posições mais ativistas em outras ocasiões, que a Lei Geral da Copa teria sido “aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo chefe do Poder Executivo”, não sendo cabível ao supremo intervir sobre os juízos de “conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos”. Direção que foi acompanhada por diversos outros ministros.

O subtexto da argumentação de diversos outros ministros acentuava, em suma, a interessante suposição de que a convergência entre os poderes executivo, legislativo e mesmo o judiciário, pareciam “conspirar” a favor da constitucionalidade dos dispositivos do regime jurídico criado para a realização da copa. O Brasil teria, nas palavras do Ministro relator, assumido “livre e soberanamente” compromissos à época de sua candidatura, algo que deveria agora ser respeitado pela Corte no seu juízo sobre a constitucionalidade da Lei 12.663/12.

Desse modo, o STF se eximia de controlar a constitucionalidade do regime jurídico da copa à luz dos princípios constitucionais da igualdade jurídica, e das regras constitucionais que dificilmente autorizariam as diversas exceções criadas em favor da FIFA. Os argumentos para isso são reduzidos à consideração da força inquestionável dos imperativos econômicos e dos imperativos políticos que não necessariamente se coadunam com as estruturas jurídicas que possibilitam qualquer democracia. Como se a própria economia, para seu funcionamento razoável, não exigisse mecanismos de certeza jurídica baseados em alguma autônoma do sistema jurídico em relação a interesses particularistas tanto econômicos quanto políticos.

Alterar o regime de propriedade, o regime tributário, o regime de responsabilidade civil e o regime penal do país em benefício de uma empresa privada, da forma como foi feito,teria de ser objeto de testes básicos, de consideração constitucional, à luz das exigências de igualdade jurídica frente a outros atores privados ou mesmo atores públicos.

A verdade é que o regime jurídico de exceção da copa estabelece restrições a direitos de terceiros e garante privilégios particularistas a uma entidade privada que seriam vedados até mesmo ao Estado brasileiro. E deveria ser tarefa irrenunciável do STF controlar minuciosamente a validade jurídica de diversos de seus dispositivos. .

 

Diálogos institucionais ou autocontenção? A copa como (big) “business as usual”

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de intensos debates públicos e acadêmicos, de acordo com um diagnóstico muitas vezes pouco preciso acerca de uma “judicialização da política”. A expansão de seus poderes, na esfera do controle concentrado e difuso de constitucionalidade, suscitou, assim, críticas e disputas acerca do seu papel no concerto institucional dos poderes.

De um lado, fizeram-se severas críticas a um exercício expansivo da jurisdição constitucional capaz de limitar o exercício do poder legislativo e executivo, fundados na legitimação eleitoral tão importante em uma democracia. De outro, há críticas relevantes à expansão de um discurso constitucional baseado em uma principiologia vaga e imprecisa, que permitiria o uso ilimitado dos poderes constitucionais do tribunal, muitas vezes de modo contraditório e instável.

Viveríamos, assim, sob o risco de do estabelecimento de uma verdadeira juristocracia, limitada apenas por aquilo que o próprio tribunal considera metodologicamente aceitável, de acordo com certas teorias da moda que servem menos para orientar decisões racionais do que como mecanismo retórico de justificação de decisões políticas. Isso significaria, enfim, uma ameaça aos mecanismos típicos da democracia moderna, em que o direito deveria se conectar, em última análise, à soberania popular.

De fato, a inflação discursiva da retórica dos princípios parece muitas vezes ser um pretexto para dar conta de uma complexidade social extremamente explosiva, sobretudo num país marcado por estruturas sociais extremamente excludentes e desiguais. Ao recorrer a mecanismos altamente flexíveis na fixação de seus parâmetros decisórios, o tribunal pode muitas vezes legitimar jurisdição constitucional que aquiesce com estruturas particularistas e com a violação de direitos básicos individuais e sociais dos setores mais pobres, excluídos mesmo da população.

As críticas feitas ao STF em relação à expansão de seus poderes e à sua inflação principiologista culminaram em crescentes conflitos da corte com outros poderes da república, principalmente com o legislativo. E esses conflitos parecem ter levado o tribunal, mais recentemente, a uma inflexão, em algumas circunstâncias pontuais, na direção de alguma medida de autocontenção.

Entrementes, eis que surge mais uma elegante teoria a justificar o comportamento do tribunal, tanto do ponto de vista do exercício expansionista do seu poder, como de seus esforços pontuais em realizar algum tipo (bem circunstancial e seletivo) de autocontrole.

Na bolsa das teorias, emergiu nos últimos anos o diagnóstico, de fato interessante, por parte de teorias neoinstitucionalistas de que as relações entre os poderes republicanos não precisam ser vistas a partir de um desenho institucional fixo e conflitivo de competências.

Segundo esse diagnóstico, o comportamento dos poderes em um arranjo democrático não implicaria uma decisão última entre uma democracia popular e uma juristocracia expansionista. Em realidade, os poderes se relacionariam muito mais de acordo com um concerto mais ou menos construtivo de aprendizados recíprocos, baseados em “diálogos institucionais” em que cada parte avança, cede e concede, a depender das dinâmicas temporais de observação recíproca.

Em suma, ninguém teria de fato a última palavra sobre as decisões constitucionais, senão que as dinâmicas institucionais seriam responsáveis por construir consensos políticos que afetariam e vinculariam crescentemente os diversos poderes reciprocamente.

O diagnóstico teórico, em si, parece bastante plausível. Aliás, assim como no caso de outras teorias de metodologia constitucional, o problema não são as construções teóricas mais ou menos complexas que são importadas e incorporadas no discurso da corte. Como sempre, o problema está na transformação dessas teorias em mecanismos retóricos de justificação para a histórica seletividade das instituições do Estado brasileiro, costumeiramente empenhado em proteger interesses particularistas e em detrimento dos direitos fundamentais da maioria pobre e excluída da população.

No caso da copa do mundo da FIFA, o Tribunal visivelmente parece ter se deixado influenciar pela retórica dos diálogos institucionais para conceder ao concerto dos poderes a prerrogativa de ter construído um consenso político institucional em torno do pacto assumido pelo Estado brasileiro para a realização do torneio no país.

O STF reconheceu que tanto o legislativo como o executivo (e também setores do judiciário) agiram em concerto para viabilizar o evento, e que não caberia ao tribunal qualquer consideração sobre o mérito dessa decisão, que implicava, porém, numa série de absurdos.

Ora, as teorias neoinstitucionalistas não são, porém, teorias propriamente jurídicas, e portanto capazes de oferecer parâmetros decisórios para decisões de uma corte constitucional. Com origem no pensamento econômico, essas teorias se tornaram hegemônicas no campo da ciência política e, por meio dessa disciplina, vem sendo incorporada à analise das dinâmicas constitucionais dos poderes. Elas se preocupam muito mais em entender como se dão as interações entre diferentes instituições in the long run do que em oferecer quaisquer parâmetros dogmáticos de decisão.

Mas decisões tem sempre que se submeter a alguns parâmetros. Elas são sempre opções por uma possibilidade que exclui, necessariamente, outras. E seus parâmetros podem ser políticos (o interesse dos partidos, dos grupos sociais, dos indivíduos etc numa democracia), econômicos (os interesses empresariais e individuais em ganhos monetários no mercado), científicos (a comprovação empírica ou a plausibilidade teórica de uma hipótese em detrimento de outra no debate acadêmico) ou, no caso, jurídicos (as regras e princípios internos a uma ordem jurídica constitucional, no caso de um Estado Democrático de Direito).

Ainda assim, se teorias constitucionais podem oferecer mecanismos metodológicos para construir parâmetros decisórios no interior do direito, é, a rigor, o compromisso do tribunal constitucional com a coerência do ordenamento e com as suas próprias decisões, à luz das regras e princípios constitucionais que devem orientá-las, que nos dá alguma garantia da higidez do regime constitucional democrático.

A tarefa do tribunal é fazer com que o sistema jurídico opere sem se submeter diretamente a interesses privados particularistas, seja de grupos políticos ou econômicos: uma condição fundamental para o funcionamento não só da democracia, mas da própria economia de mercado, que não pode se reproduzir sem segurança jurídica e sem mecanismos que garantam a igualdade formal de direitos.

No caso da copa do mundo, ao se eximir de julgar a conveniência e oportunidade das decisões políticas que uniram o Estado brasileiro aos interesses da FIFA, o STF não respeitou, como quis dar a entender, os poderes políticos do parlamento e do executivo.

As exceções absurdas feitas no ordenamento brasileiro em favor da FIFA por meio do regime jurídico da copa e o estabelecimento de um status supraconstitucional ao “pacto político” em favor da sua realização poderiam, sim, ser objeto de controle jurídico-constitucional. Essa é a tarefa precípua da corte. Assim como poderão e deverão ser objeto de algum controle de constitucionalidade os dispositivos questionados na ADI de nº 5030, relativos às praticamente ilimitadas isenções fiscais concedidas à FIFA pela Lei 12.350/10, cujo relator é o Ministro Dias Toffoli.

Ao se omitir de realizar controle constitucional jurídico, o tribunal parece ter decidido se redimir das críticas que vem sofrendo. Mas, para tanto, parece não ter se preocupado tanto assim com a coerência do sistema (que dificilmente aceitaria, por exemplo, o estabelecimento da responsabilidade objetiva integral do Estado em favor de um parceiro privado economicamente interessado). Esse tipo de omissão, a rigor, poderia afinal ser sempre justificado por alguma (ou qualquer) teoria.

Por outro lado, o tribunal talvez tenha agido de modo coerente com a atávica e conhecida seletividade das instituições brasileiras e sua tendência a favorecer os interesses de grupos econômicos importantes capazes de oferecer benefícios, também seletivos, aos donos do poder: (Big) Business as usual.



[1] Agradecemos a Marcelo Neves pela intuição a respeito do mau uso da teoria dos diálogos institucionais no presente caso.

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Empresas não são pessoas. Por que a contribuição eleitoral de pessoas jurídicas é uma ameaça à democracia e à liberdade econômica http://www.criticaconstitucional.com/empresas-nao-sao-pessoas-por-que-a-contribuicao-eleitoral-de-pessoas-juridicas-e-uma-ameaca-a-democracia-e-a-liberdade-economica/ http://www.criticaconstitucional.com/empresas-nao-sao-pessoas-por-que-a-contribuicao-eleitoral-de-pessoas-juridicas-e-uma-ameaca-a-democracia-e-a-liberdade-economica/#comments Fri, 02 May 2014 11:55:46 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=756 Empresas não são pessoas.

Por que a contribuição eleitoral de pessoas jurídicas é uma ameaça à democracia e à liberdade econômica

 

Pablo Holmes (Professor de teoria política no IPOL/UnB)

No último dia 02 de Abril, o Supremo Tribunal Federal discutiu em plenário a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n°4650) que tratava  do dispositivo legal que autoriza a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e partidos políticos.

Embora a Constituição de 1988 não vede explicitamente a possibilidade de pessoas jurídicas doarem recursos para campanhas eleitorais, a autora da ação, a Ordem dos Advogados do Brasil e os diversos atores da sociedade civil que se juntaram ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, argumentaram que a possibilidade de pessoas jurídicas, sobretudo empresas, contribuírem com candidatos e partidos ameaçaria um dos fundamentos da democracia: a igualdade política entre cada um dos eleitores.

A maioria do tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos da legislação eleitoral e, assim, proibir a doação de empresas para candidatos e partidos políticos. Uma inusitada manobra política de um dos ministros adiou a decisão final. Mas, entrementes, deu-se, segundo a imprensa, uma movimentação no parlamento para contornar a decisão por meio de uma emenda constitucional.

Como eu entendo, a questão tratada na ADI 4650 diz respeito não apenas a um dos  fundamentos  da democracia moderna. Sem dúvida, espera-se que haja igualdade política em um regime democrático, base do sistema constitucional em um Estado Democrático de Direito. Contudo, nesse caso, trata-se também de um problema fático com repercussões explosivas não só sobre o funcionamento (normativo) da democracia, mas sobre as relações entre a política e outras esferas sociais relevantes.

Aqueles que defendem a liberdade de expressão ou a liberdade econômica devem se preocupar com a igualdade política como condição das primeiras. Isto porque a distinção entre questões econômicas, jurídicas, científicas e da individualidade moderna  depende em muitos sentidos da igualdade política. E esta pode ser ameaçada pela expansão destrutiva da economia sobre os procedimentos eleitorais e parlamentares por meio da influência do dinheiro.

O Estado entre centralização do poder e autocontrole

O senso comum teórico entende que o Estado moderno, graças ao seu monopólio em relação ao exercício legítimo da violência, torna-se um grande Leviatã com poderes ilimitados. Uma perspectiva teórica mais cuidadosa nos mostraria, no entanto, que a característica mais fundamental das instituições políticas modernas é a sua capacidade de restringir e impor cada vez mais exigências ao exercício do poder.

De fato, a centralização política sob um Estado foi uma condição para a diferenciação do sistema político. Apenas um Estado centralizado poderia impor decisões de modo transversal para diferentes indivíduos e setores sociais tão diversos.

Uma reconstrução desse processo de centralização política, sobretudo na Europa moderna, mostra-nos, entretanto, que tal centralização se tornou possível apenas graças à emergência de uma série de inovações institucionais as quais, paradoxalmente, tornavam o poder social mais submetido a controles e condições.

Esse argumento, formulado de modo bastante atilado por Harold Berman (“Law and Revolution“), com farto material histórico, e retomado em recente obra por Chris Thornhill (“A Sociology of Constitutions”), aponta-nos que, antes do advento do Estado moderno, prevaleciam na Europa formas extremamente fragmentadas de exercício privado (particularista) do poder social. E mesmo onde havia algum tipo de centralização – o que vale para outras regiões do planeta –, o exercício pessoal do poder, conectado a divisões da sociedade em classes e estamentos, tornava-o um recurso em certa medida invisível, justificado a nativitate  (sobretudo por meio da religião).

Apenas mediante o uso de técnicas sociais que tornavam as ordens de um poder central conhecidas, compreensíveis e implementáveis, foi possível aos nascentes Estados europeus desenvolver mecanismos de exercício do poder capazes de se alastrar por amplas extensões territoriais, sobrepondo-se a fontes pessoais e particularistas de poder.

O direito moderno, com estrutura social baseada em uma operatividade crescentemente autônoma e em uma forma de conhecimento técnico-profissional dogmática, foi, sem dúvida, o elemento fundamental para a própria possibilidade de centralização política. Apenas mediante limitações jurídicas ao poder tornaram-se possíveis formas impessoais de domínio que afirmassem a soberania do Estado frente ao poder pessoal de senhores locais.

De fato, a centralização crescente levou a uma dinâmica ameaçadora da sociedade moderna nascente. O exercício do poder por um Estado centralizado se torna o exercício de uma “soberania” que só pode ser limitada pelas próprias razões de existência do Estado (como Leviatã). As razões de Estado (raisons d’etat) apoiavam uma arriscada expansão do poder político, em nome da manutenção da ordem e da pacificação social, que poderia destruir outras esferas sociais, como a economia, a ciência, para não falar de indivíduos tornados indefesos diante de um poder quase-absoluto.

Esse processo de centralização representou para o sistema político uma sobrecarga de fundamentação. Entretanto, o mesmo direito que tornava possível a centralização do poder, e portanto reduzia as possibilidades de seu uso arbitrário por formas fragmentadas e pessoais de soberania, tornava visível a ruptura arbitrária do seu uso por um novo soberano ilimitado: o Leviatã moderno.

Não tardaria para que uma sociedade que havia negado, por meio da centralização política, o poder arbitrário e inquestionável de soberanos que justificavam seu domínio pessoal com o recurso a éticas tradicionais e religiosas construísse soluções institucionais que promovessem uma “defesa da sociedade” frente ao seu próprio sistema político.

A democratização política: inclusão política igualitária como mecanismo de controle do poder

Graças a inovações institucionais extremamente improváveis tornou-se possível a limitação ao menos parcial do uso particularista do poder centralizado de um Estado tornado soberano por interesses de grupos ou indivíduos.

Os sistemas de direitos fundamentais modernos surgem, nesse sentido, como uma estrutura normativa que incrementa a capacidade de diferenciação do sistema político por meio de mecanismos jurídicos que visam, ao menos normativamente, a neutralizar injunções de interesses capazes de permitir o uso arbitrário do poder político.

Por um lado, os direitos individuais constituem uma esfera não politizável prima facie da vida social, em que indivíduos podem desenvolver biografias pessoalmente delimitadas e se engajar em atividades distintas (econômicas, afetivas, profissionais, científicas, artísticas etc) sem necessariamente ter que dar permanentemente razões políticas para tanto.

Por outro lado, direitos políticos são constituídos como mecanismos de processualização do poder, ao evitar que este seja apropriado por um grupo particular capaz de se impor à coletividade (ao conjunto de indivíduos).

A processualização inclusiva do sistema político é, desse modo, uma condição da sua diferenciação, na medida em que funciona como um mecanismo que torna possível a disputa pelo poder (pelo governo) e a crítica permanente de decisões coletivamente vinculantes por uma oposição política parlamentar e extraparlamentar (partidos, movimentos de protesto, movimentos sociais etc).

O processo de democratização do sistema político, que sem dúvida é precário e bastante heterogêneo em diversas regiões do planeta, consiste no estabelecimento de instituições voltadas a evitar, ao menos normativamente, arbitrariedades e influências de conjunções particularistas capazes de tornar o sistema político uma ameaça para a própria sociedade: para as liberdades individuais, econômicas, religiosas e científica.

Igualdade política como “dogma” do sistema político moderno

A diferenciação do sistema político por meio de um conjunto de instituições que estabelecem expectativas estruturais de que o poder não deve ser apropriado por interesses particularistas, mesmo sendo improvável e precário, pode se realizar em alguma medida. A ciência política contemporânea tem se esforçado para investigar, também empiricamente, quais são as dinâmicas sociais (entre elas econômicas, políticas, científicas e culturais) que favorecem esse processo.

Se a pergunta “como e por que se democratizam as sociedades?” ainda é objeto de franca disputa teórica, parece que há mais consenso quanto à pergunta “em que consiste a democratização política”? O processo de diferenciação institucional da política moderna parece ter se tornado possível apenas com o estabelecimento de uma série de mecanismos processuais capazes de expor o exercício do poder a uma constante possibilidade de oscilação entre governo e oposição e a uma permanente possibilidade de controle e crítica.

A circulação social não arbitrária do poder depende do estabelecimento de processos amplamente inclusivos e igualitários de decisão política, seja mediante procedimentos eleitorais, seja por meio dos mecanismos institucionais de divisão de poderes e controles jurídicos internos ao Estado. Assim surge um dos dogmas normativos e estruturais fundamentais da política democrática: a igualdade política.

Diferentemente da igualdade jurídica, que exige que casos iguais sejam tratados igualmente e casos diferentes sejam tratados desigualmente, a igualdade política tem uma dimensão um tanto mais absoluta. Para a política, todos os indivíduos são iguais, sem quaisquer especificações e relativismos. Em uma comunidade política democrática, o voto do homem mais rico tem o mesmo valor do voto da mulher mais pobre.

A igualdade política não implica, portanto, igualdade econômica. Ela implica, exatamente, que nenhum indivíduo, grupo ou interesse pode se utilizar de posições sociais determinadas por mecanismos externos à política para influenciar o funcionamento dos procedimentos.

Sem dúvida, essa é uma exigência extremamente improvável de ser cumprida. E podem ser enumeradas diversas formas de influência segundo as quais posições sociais na economia, na ciência, nas artes ou nos esportes podem ter alguma influência no sistema político.

Ainda assim, a igualdade política nos procedimentos eleitorais e legislativos é um pressuposto fundamental normativo e fático da diferenciação da política. E embora se possa falar em “influência política” de um indivíduo bem sucedido na economia, na ciência ou nas artes, tal influência pode se apoiar no prestígio individual, sem que possa significar uma confusão de códigos. O dinheiro não pode comprar votos, nem pode influenciar diretamente os procedimentos políticos. Assim como o número de títulos acadêmicos ou a reputação científica não podem credenciar ninguém a ter mais poder político ou a decidir eleitoral ou legislativamente em nome dos outros.

A diferenciação do sistema político democrático não toleraria a institucionalização de diferenças nos próprios procedimentos. Isso representaria, fatalmente, a institucionalização de hierarquias em que o poder social particular poderia ser utilizado para reduzir os espaços de determinação de outros indivíduos e grupos em distintas esferas (inclusive na economia e na ciência).

A igualdade política é uma condição para que o exercício do poder político não se torne arbitrário, particularista. E assim ela não representa uma ameaça, por exemplo, à liberdade econômica ou à liberdade de expressão. Pelo contrário, ela é a condição imposta pela sociedade para que o poder possa ser minimamente neutralizado dos riscos permanentes de particularismos que podem usá-lo para invadir, de modo destrutivo, outras esferas de liberdade social.

A igualdade política como condição da liberdade econômica e os limites recíprocos entre política e economia

A diferenciação do sistema político moderno é uma condição para a diferenciação de outras esferas sociais, que podem passar a funcionar de acordo com sua própria lógica interna. Essa intuição, que é conhecida da teoria social, parece ter ganhado força, nas últimas décadas, também na teoria econômica e na sociologia da economia.

Teorias institucionalistas e neoinstitucionalistas apontaram de diversas maneiras as relações entre o estabelecimento de certas estruturas sociais e a estabilização de mecanismos auto-regulatórios da economia de mercado. Segundo seu ponto de vista, apenas um conjunto de instituições políticas possibilitariam o surgimento de instituições econômicas baseadas na livre circulação de mercadorias, em que decisões individuais podem ser o motor de realização de transações baseadas em um sistema de preços.

A sociologia econômica, por sua vez, rejeita de modo ainda mais peremptório a divisão um tanto contraintuitiva entre sociedade e economia e recoloca a economia de mercado como apenas mais uma das diversas esferas da vida social moderna. Nesse campo, a intuição de um processo recíproco de implicação entre a diferenciação de uma economia de mercado e a democracia política se tornam ainda mais plausíveis.

Autores como Jens Beckert (“Beyond the Market“), Marc Granovetter (“The Sociology of Economic Life“) e Richard Swedberg (“Principles of economic sociology“) apontaram, por exemplo, que a emergência do mercado como instituição social relevante para a produção e distribuição de recursos econômicos dependeu de um sofisticado complexo de instituições e valores não econômicos que possibilitassem seu florescimento.

Poderíamos, assim, dizer que a própria economia de mercado depende de sua co-evolução com um sistema político dotado de mecanismos de neutralização do poder e com um direito capaz de sustentar um espaço individual de decisões e um conjunto de valores capazes de oferecer a estabilidade de expectativas e a confiança necessárias para a difusão dos tipos de interação que caracterizam as transações típicas do mercado.

O fato de que o poder político pode ser usado para bloquear e influenciar o funcionamento do direito é algo um tanto trivial. Mas a apropriação privada de poder político, tal como era comum em ordens políticas pré-modernas, não apenas favorecia os detentores pessoais do poder, como impedia o funcionamento de instituições econômicas baseadas no mecanismo auto-regulatório do sistema de preços. Afirmar, como fizeram os críticos da sociologia econômica, que todas as sociedades se baseiam nas leis de mercado é simplesmente ignorar que aquilo que a ciência econômica entende por mercado era completamente inexistente dos esquemas simbólicos de ação de sociedades pré-modernas.

Em sociedades feudais, por exemplo, proprietários de terras jamais poderiam dispor da sua propriedade por contrato, faltavam-lhes mecanismos institucionais que possibilitassem tal forma de transferência de bens. Nesse sentido, a ideia de que o sistema econômico pode funcionar de modo “livre” ou, em outras palavras, baseado na sua própria lógica interna (lei da oferta e da procura) depende de uma série de pressupostos institucionais, entre os quais a possibilidade de que o poder político não possa ser utilizado de modo arbitrário para inibir os espaços individuais de decisão sobre a alocação de recursos.

Se relacionarmos essa intuição com o problema da igualdade política e das relações entre política e economia, perceberemos fatalmente que a própria liberdade econômica depende, para existir, de um sistema político capaz de eliminar arbitrariedades e em certa medida neutralizar, ao menos normativamente, o uso do poder privado para impor a superioridade de interesses individuais ou de grupos sociais específicos.

Logo, a igualdade política não é relevante apenas para a política. Ela é relevante também para a economia, na medida em que possibilita ao sistema político oferecer à economia as condições de que ela necessita para operar com base em um sistema de flutuação de preços baseados na oferta e demanda.

Empresas não são pessoas: As contribuições de empresas para campanhas eleitorais como uma ameaça à democracia

Qualquer interferência  que  coloque em risco a igualdade de poder entre os indivíduos nos procedimentos políticos, não tem só o efeito de “influenciar” o sistema político. Não preservá-la produz ameaças capazes de romper com a capacidade do sistema político de tornar esperada a neutralização de exercícios arbitrários de poder, ou seja, compromete a difusão de expectativas que garantem a autonomia do sistema político frente à economia.

No caso da contribuição de empresas para partidos e candidatos, é relevante lembrar que empresas são organizações típicas do sistema econômico. Se indivíduos podem gozar de prestígio por sua performance econômica, artística, cultural ou científica, as empresas se caracterizam por existirem com uma finalidade fundamentalmente econômica: a perseguição de lucros.

Se algumas empresas são bem sucedidas, e gozam de uma boa reputação, esta se relaciona a sua performance no interior da lógica da oferta de produtos, mercadorias e serviços em um mercado livre, em que indivíduos podem escolher baseados em suas preferências.

No que diz respeito ao uso social do poder em uma democracia, indivíduos interessados economicamente continuam, porém, apenas pessoas únicas e dotadas da mesma quantidade de poder social, capazes de influenciar o processo político à medida de sua inclusão igualitária em uma comunidade política. Certamente, alguns indivíduos podem gozar de maior prestígio na esfera pública: seja por sua expertise, por seu reconhecimento social, pela sua capacidade de ganhar dinheiro etc.

Ainda assim, os procedimentos políticos igualitários permanecem como a garantia para toda a sociedade, inclusive para a economia, de que tal influência permaneça limitada às performances individuais, dignas de estima pelo conjunto da sociedade. O que a política democrática não pode permitir é que recursos acumulados fora do sistema político (como o dinheiro ou o conhecimento) possam ser utilizados para influir ou até mesmo determinar a distribuição de espaços, visibilidade e capacidade de orientação dos atores no interior dos procedimentos eleitorais e legislativos.

Na medida em que os procedimentos políticos podem ser objeto não apenas da influência proveniente do prestígio individual, inclusive dos bem sucedidos economicamente, mas pela sua disponibilidade de dinheiro ou conhecimento, rompe-se a higidez dos procedimentos baseados no postulado fundamental da igualdade política entre todos os indivíduos. Do ponto de vista sociológico, há aqui não apenas “influência” (ou “irritação”) mas a ruptura da autonomia da política e a confusão entre formas distintas de comunicação.

Nesse caso, quem tem mais dinheiro pode não apenas ser ouvido graças a seu prestígio como um empresário bem sucedido, senão que ele pode determinar a quantidade de exposição e o poder político de um candidato ou partido que seja de seu interesse. E a medida de seu poder se dará, assim, de acordo com a sua capacidade de mobilizar recursos econômicos (dinheiro). No limite, torna-se possível bloquear inclusive o acesso aos procedimentos políticos por parte daqueles que, mesmo dotados de prestígio, não possam dispor de suficientes recursos econômicos. O poder político passa a ser programado e “gerenciado” por meio de um leilão (quem tem ou dá mais?) e não de acordo com os mecanismos institucionais internos do próprio sistema político.

Caso parecido poderia acontecer se se impedissem certas opiniões de serem defendidas ou discutidas na esfera pública – por exemplo posições religiosas – pelo simples fato de elas não gozarem de aceitação em uma determinada comunidade de experts capaz de definir, no interior da ciência, a forma de conhecimento aceitável sobre certa matéria.

Tornar os procedimentos eleitorais uma extensão do espaço de concorrência entre agentes econômicos, que podem passar a financiar candidatos e partidos à medida de sua capacidade econômica, coloca em jogo, porém, não apenas a democracia, já que ameaça sua capacidade de neutralizar minimamente injunções de interesse particulares no exercício do poder.

Em última análise, a intrusão de recursos ancorados em uma perseguição particularista (e talvez legítima, na esfera do mercado) de interesses econômicos nos domínios da política democrática ameaça também aqueles mecanismos institucionais que foram centrais para favorecer o florescimento de um direito minimamente impessoal e da própria economia de mercado, com as liberdades a ela associadas. Permitir tal forma de influência nos coloca no caminho de nos tornar uma sociedade estruturalmente hierárquica, agora não mais baseada no nascimento e no sangue, mas no poder daqueles que podem pagar por direitos. Ou talvez nos mantenha em tal situação.

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Lançamento do livro “Dignidade Humana na visão do Tribunal Constitucional Federal alemão, do STF e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.” http://www.criticaconstitucional.com/lancamento-do-livro-dignidade-humana-na-visao-do-tribunal-constitucional-federal-alemao-do-stf-e-do-tribunal-europeu-de-direitos-humanos/ http://www.criticaconstitucional.com/lancamento-do-livro-dignidade-humana-na-visao-do-tribunal-constitucional-federal-alemao-do-stf-e-do-tribunal-europeu-de-direitos-humanos/#comments Fri, 25 Apr 2014 16:36:55 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=744 Amanhã à tarde será lançado, em Brasília, o livro “Dignidade Humana na visão do Tribunal Constitucional Federal alemão, do STF e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.”, de autoria de João Costa Neto. O autor é Mestre em Direito pela Universidade de Brasília e a obra é fruto de sua Dissertação, orientada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que prefacia a obra. Para quem se interessar, o lançamento ocorrerá no Instituto Brasiliense de Direito Público/IDP, a partir das 14:00.
Adiante, alguns detalhes sobre o conteúdo do livro:
“Enquanto conceito jurídico-doutrinário fundado na autodeterminação, a dignidade humana está relacionada a vários problemas de difícil solução. O objetivo do livro é propor, quando não soluções, maneiras de melhor compreender tais problemas. Reality shows, arremessos de anão e Peep-Shows, por exemplo, suscitam grandes divergências entre juristas. O mesmo vale para a prostituição, o direito à eutanásia, a impenhorabilidade de bens, o discurso do ódio e a tutela post mortem do direito geral à personalidade. Esses são alguns dos pontos que foram objeto da presente investigação.

 

O livro também oferece ao leitor uma síntese das principais decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF) sobre a dignidade humana. Nesse contexto, foram analisadas decisões que versam acerca da liberdade de crença, do mínimo existencial, do direito fundamental à propriedade, de escutas ambientais dentro do lar, do abate de aeronaves, de penas de morte, cruéis ou atrozes, da alteração do registro civil de transexual, da autodeterminação informativa, da tutela pós-morte da dignidade, do aborto, dentre outras. Todos esses variados temas foram enfrentados e solucionados, na judicatura do TCF, com amparo da dignidade humana.

De maneira análoga, o texto põe à disposição do público uma análise crítica da postura do Supremo Tribunal Federal no que concerne à dignidade humana. Nesse particular, os julgados examinados comprovam que há uma trivialização da dignidade humana ou da sua invocação no Brasil. Dignidade humana não é panaceia jurídica.

Por fim, é de ressaltar-se o estudo da dignidade no sistema europeu de proteção dos direitos humanos, por meio das decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, mormente aquelas a respeito do direito à vida, da privacidade informativa e da proibição da tortura, da escravidão e das penas de morte ou degradantes.”

JOÃO COSTA NETO

Doutorando em Direito Público pela Humboldt-Universität zu Berlin. Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrando em Direito Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). É Professor Substituto de Direito Constitucional e Direito Administrativo na UnB e Advogado em Brasília. Student Member da Society for the Promotion of Roman Studies (Fundada em 1910) e da Society for the Promotion of Hellenic Studies (Fundada em 1879).

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http://www.criticaconstitucional.com/lancamento-do-livro-dignidade-humana-na-visao-do-tribunal-constitucional-federal-alemao-do-stf-e-do-tribunal-europeu-de-direitos-humanos/feed/ 0
Cotas Raciais no Serviço Público: o julgamento da ADPF 186 antecipa a constitucionalidade de quaisquer outras políticas afirmativas? http://www.criticaconstitucional.com/cotas-raciais-no-servico-publico-o-julgamento-da-adpf-186-antecipa-a-constitucionalidade-de-quaisquer-outras-politicas-afirmativas/ http://www.criticaconstitucional.com/cotas-raciais-no-servico-publico-o-julgamento-da-adpf-186-antecipa-a-constitucionalidade-de-quaisquer-outras-politicas-afirmativas/#comments Thu, 24 Apr 2014 08:56:12 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=740 Damião Alves de Azevedo

Advogado – Mestre em Direito pela UnB

Por enquanto, a mescla nas cores e a confusão nas ideias é o nosso apanágio.

Sylvio Romero

(A Poesia Popular no Brasil, Revista Brasileira, vol. 7, 1881)

 

Em novembro de 2013, a Presidência da República encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.738, em que se propõe a reserva de 20% das vagas disponibilizadas em concursos para o serviço público federal a candidatos que se declararem pretos ou pardos. Também em novembro de 2013, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula, assinou o Ato GDGSET.GP 779, segundo o qual 10% dos empregados das empresas contratadas pelo TST, para prestação de serviços continuados e terceirizados, com mais de dez trabalhadores vinculados, devem ser reservadas a afrodescendentes.

Há outros projetos a respeito de cotas raciais, como, por exemplo, a PEC 116/2011, que prevê cotas para cargos políticos eletivos, por cinco legislaturas. Esse debate tem ganhado força no Brasil desde os anos noventa. E certamente foi impulsionado pelo célebre julgamento da APF 186, no qual o STF admitiu a constitucionalidade do programa de cotas raciais da Universidade de Brasília. O resultado unânime do julgamento da ADPF 186 foi inesperado até mesmo pelos mais otimistas defensores das políticas afirmativas. O PL 6.738/13 e o ato administrativo do TST indicam que o resultado da ADPF 186 empolgou não apenas os militantes da causa, mas também gestores públicos, que desde então têm se visto diante do desafio da possibilidade de aplicação de critérios raciais a outras políticas públicas.

Será possível afirmar que o julgamento da ADPF 186 põe um ponto final no debate sobre a constitucionalidade das políticas afirmativas e legitima quaisquer outros programas de cotas raciais?

A tese que tenho sustentado desde 2007 é que o juízo de constitucionalidade das políticas sociais em geral – e das políticas de cotas raciais, em especial – deve atender a três requisitos essenciais. Um requisito fático: a existência de formas concretas de discriminação. Um requisito instrumental: a possibilidade de remanejamento político do bem jurídico em disputa. E, por fim, um requisito teleológico: a estratégia de distribuição adotada deve ser voltada à superação do estado de desigualdade, não podendo produzir diferenças de status permanentes.

O primeiro requisito significa que políticas afirmativas são medidas de combate ao racismo no presente. Não são compensações por discriminações ocorridas no passado. Ainda que nossa longa história de escravidão possa ser a principal explicação, ou origem, da segmentação racial no presente, a constitucionalidade das políticas afirmativas não se presta a reparar gerações passadas, pois a instituição de qualquer política pública está condicionada ao enfrentamento de problemas atuais, independente de sua origem. Recorro a uma ilustração que pode talvez parecer jocosa, mas acredito ser elucidativa. Às vésperas da Revolução Francesa, Emmanuel Sieyès, em seu famoso O que é o Terceiro Estado, lembrava que, no final do século XVIII, a divisão de estamentos na França ainda era justificada em termos étnicos. De acordo com o senso comum então dominante, o Terceiro Estado seria composto por descendentes de povos celtas e romanos, subjugados pelos invasores germânicos, dos quais descenderia a aristocracia, o Segundo Estado. O status social era justificado pela hierarquia atávica entre os povos. Na França medieval, essa divisão étnica determinava a identidade social das pessoas e, de fato, membros dos estamentos inferiores foram discriminados e impedidos de ter acesso a atividades tidas como privilégio das castas superiores. Embora seus ancestrais tenham sido vítimas de discriminação, seria impossível admitir, na França de hoje, a constitucionalidade de políticas afirmativas em favor dos descendentes de celtas ou romanos. Mesmo que fosse possível identificar esses descendentes, aquelas identidades étnicas não mais estão presentes nas relações sociais contemporâneas. Elas não mais determinam o lugar social do indivíduo na sociedade francesa. Portanto, não importa como os indivíduos foram discriminados no passado, mas sim como o preconceito se dá hoje.

Nas relações raciais no Brasil atual, por exemplo, a aparência racial pode determinar a obtenção de um emprego ou a rejeição a casamentos interraciais. Ainda que as origens dessa forma de preconceito possam ser explicadas com base na escravidão, as políticas afirmativas não se justificam por que um dia existiu escravidão, mas sim a partir do racismo verificado no presente.

O segundo requisito significa que a política pública não pode ferir direitos subjetivos dos demais cidadãos. A política afirmativa será constitucional quando lidar com bens jurídicos passíveis de remanejamento discricionário, conforme objetivos públicos vinculantes da Administração. Por exemplo, por mais genial que seja, nenhum estudante tem direito subjetivo de ser médico, engenheiro ou advogado, pois a própria criação de uma vaga, e de qualquer curso, depende de decisões de conveniência e oportunidade. Atualmente, um estudante vocacionado para a carreira médica, e com habilidades manuais tão excepcionais que o tornariam um excelente cirurgião, pode ser reprovado no vestibular por tirar uma nota baixa em geografia. Não ser bom em geografia não significa que não será um bom médico. Mas ninguém duvida que seja aceitável exigir conhecimentos de geografia como critério de seleção nos vestibulares de medicina, pois isso contempla uma política educacional mais ampla. Do mesmo modo, critérios raciais não são necessariamente os padrões corretos para decidir quais candidatos serão aprovados no vestibular. Mas o mesmo vale para quaisquer outros critérios. As universidades não utilizam testes de aptidão intelectual porque os candidatos têm direito de serem assim avaliados. Mas porque é razoável esperar que a sociedade estará mais bem servida se os profissionais especializados tiverem bom desempenho escolar. Ou seja, testes de conhecimento não se justificam porque premiam os mais inteligentes, mas porque servem a uma política social útil. Nenhum estudante tem direito a uma vaga na universidade por suas realizações passadas, virtudes, talentos ou outras qualidades inatas. Os candidatos são escolhidos em razão da probabilidade de – juntamente com outros selecionados pelos mesmos critérios – contribuírem para realizar objetivos politicamente definidos. E o combate ao racismo é um objetivo público legítimo, o que torna possível utilizar a identidade racial, desde que combinada com outros critérios, para selecionar universitários.

Mas é ainda necessário atender àquele terceiro requisito. Políticas sociais, em regra, exigem seleção de beneficiários. Selecionar significa discriminar. Porém, nem toda discriminação viola a igualdade, desde que justificável, na prática, como ferramenta de inclusão ou de combate a um desprezo social concreto. Paradoxalmente, toda inclusão produz uma exclusão paralela. São constitucionais aquelas políticas que, não obstante discriminem seletivamente seus beneficiários, podem criar condições para que as vítimas do preconceito sejam colocadas em condições de exercerem seus direitos autonomamente. Por exemplo, todo cidadão tem direito que sejam investigados os crimes dos quais tenha sido vítima. Porém, surgiu a necessidade de criação de delegacias especializadas em crimes contra a mulher. Do ponto de vista da técnica investigativa, a mulher pode noticiar um crime a qualquer delegacia e qualquer policial está habilitado a investigá-lo. Contudo, constatou-se, na prática, a utilidade de delegacias especializadas para dar efetividade àquele direito, em decorrência de discriminações sofridas no ato do registro da ocorrência. Políticas de proteção às mulheres excluem os homens. Ainda assim, são constitucionais, pois habilitam a vítima de discriminação a lutar contra obstáculos específicos ao exercício de seus direitos.

Acredito que o PL 6.738/13 atende ao primeiro requisito. Tanto no debate político, quanto nas pesquisas acadêmicas, tem predominado a conclusão de que, no Brasil, o racismo ainda é um óbice à mobilidade social ascendente de negros e índios.

Já o atendimento ao segundo requisito não me parece suficientemente demonstrado. Em tese, seria possível sustentá-lo, sob o pressuposto de que, regra geral, o serviço público pode se prestar à realização de outros objetivos, além da necessidade pontual do trabalho, ou melhor, objetivos que, apesar de não dizerem respeito às tarefas desempenhadas pelo servidor, são demandas legítimas passíveis de serem contempladas nos programas de seleção para ingresso no serviço público. Por exemplo, digamos que num estado não existam delegadas suficientes para comandarem delegacias especializadas em crimes contra a mulher. Comprovada tal necessidade, entendo que seria constitucional a criação de cotas para mulheres nos concursos, até que a necessidade fosse suprida. Essa política não violaria a igualdade, por estar atrelada a outra política de realização da igualdade.

Mas nem é preciso recorrer a essa hipótese imaginária. Diversos municípios e estados de regiões semi-áridas já instituíram frentes de trabalho em épocas de grandes secas. Essas frentes temporárias nada mais são que políticas de contratação dirigida de pessoal. A tarefa a ser desempenhada pelo contratado é trabalhar em obras públicas. A rigor, qualquer cidadão do país poderia se inscrever na seleção. Contudo, além da obra em si, há também o objetivo legítimo de oferecer trabalho e sobrevivência às populações da área em estado de emergência. Por isso, jamais se poderia julgar inconstitucional o programa de contratação cujas vagas fossem exclusivas para os residentes na região afetada.

Contratação dirigida de pessoal acontece até mesmo nas Forças Armadas, o setor do serviço público em que, no ocidente, primeiro se consagraram políticas de contratação com amplo acesso, impessoalidade e seleção por mérito. Os pelotões de selva da Amazônia contratam guias locais, conhecidos como mateiros, conferindo-lhes patente militar para inseri-los na estrutura de competências típicas da caserna. A seleção dos mateiros não é feita por concurso público, mas pela identificação casuística de indivíduos com a habilidade especial desejada pelo Exército. A justificativa óbvia da constitucionalidade dessa política militar de contratações é análoga à dos casos de dispensa e de inexigibilidade de licitação.

Diante desses precedentes, seria em tese possível admitir a utilização de critérios raciais na contratação de servidores, desde que demonstrada concretamente a adequação da medida aos objetivos almejados. Parece-me, entretanto, que o PL 6.738/13 não cumpre essa exigência.

Em primeiro lugar porque fixa uma cota única para todo o país e para todos setores do serviço público. Desconsidera que a segmentação racial, e mesmo a dinâmica das práticas de racismo, varia regionalmente, razão por que seriam mais adequadas políticas de inclusão específicas, conforme a realidade de cada região ou cada setor do serviço público.

O ofício de encaminhamento do projeto à Presidência da República, elaborado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, informa genericamente que “embora a população negra represente 50,74% da população total, no Poder Executivo federal, a representação cai para 30%, considerando-se que 82% dos 519.369 dos servidores possuem a informação de raça/cor registrada no Sistema”. O dado parece ser contrário à própria proposta. Afinal, o PL prevê uma cota de 20% a ser reservada para negros, porém, nas justificativas do projeto, a SEPPIR informa que o serviço público federal já é composto por 30% de negros, o que tornaria a proposta não só desnecessária, como inútil.

Em segundo lugar, o PL 6.738/13 não parece adequado ao objetivo de combate às formas de racismo predominantes no Brasil porque direciona o benefício tanto a pretos, quanto a pardos, o que caracteriza o projeto como uma política de combate ao racismo de origem. Isso é, no mínimo, polêmico porque as ocorrências de racismo – bem como os registros de demonstrações do sentimento social preponderante – indicam que no Brasil prevalece o preconceito de marca, e não o preconceito de origem. As pesquisas sociais indicam também que pretos e pardos não sofrem discriminação na mesma intensidade. Isso sugere que seriam mais adequadas políticas focadas nos indivíduos que sofrem o racismo em razão da identidade de marca (cor) e não de sua ascendência. Por exemplo, o ofício de encaminhamento do PL informa que há 30% de negros no serviço público federal, sem esclarecer qual é a proporção daqueles que se declaram pretos e a proporção daqueles que se declaram pardos. O PL parece pressupor que pardos e pretos sofrem discriminação na mesma intensidade. Mas se essa conclusão for procedente, então não haveria necessidade de uma cota de 20% para negros, mesmo se a totalidade daqueles 30% fosse composta por pardos.

É possível, contudo, que esses aspectos inadequados sejam ressalvados ou alterados durante o processo legislativo. Embora difícil, não chega a ser absurdo esperar que surjam emendas, ou substitutivos, que, ao invés da cota única, prevejam regras gerais passíveis de serem adaptadas administrativamente por cada órgão, conforme as características da composição atual de seu pessoal e das atividades ou comunidades profissionais nos quais seus serviços estão inseridos.

No entanto, ainda que o segundo requisito da nossa tese possa vir a ser contemplado, creio que, consideradas as características do serviço público no Brasil, o PL 6.738/13 não ultrapassaria o teste de constitucionalidade do terceiro requisito.

As cotas nos vestibulares atendem ao terceiro requisito porque a política de inclusão racial não se realiza quando o aluno entra na faculdade, mas quando o profissional já graduado consegue se afirmar autonomamente no mercado. Para permanecer na faculdade, o cotista é submetido a contínuas avaliações de mérito. O sentido das cotas na universidade não é que a composição étnica das salas de aula reproduzam as médias de composição demográfica das estatísticas do IBGE. Sua finalidade é possibilitar que pretos e índios venham eles mesmos a conquistar espaços de prestígio social, dos quais estão hoje ausentes.

Depois de aprovado no vestibular, o cotista será submetido aos mesmos testes e deverá alcançar o mesmo desempenho dos demais estudantes. Ainda que tenha tirado uma nota um pouco menor no vestibular, o cotista precisará ser aprovado nas disciplinas técnicas necessárias ao exercício de sua profissão, como qualquer outro formando. E, mais que isso, depois da graduação, seu diploma apenas o habilitará a concorrer no mercado com outros profissionais igualmente capacitados. Isto é, seu mérito profissional deverá ser continuamente provado. A existência de médicos, dentistas e outros profissionais pretos contribui para desconstruir os estigmas da cor e o desprezo racial não em razão do status supostamente conferido pelo título acadêmico. Afinal, ser o primeiro da classe não garante sucesso profissional. Na livre concorrência, o mérito não se congela num título obtido no passado, nem é um status definitivo. O acesso à universidade apenas coloca o cotista em condição inicial de igualdade para, a partir daí, seguir sua própria trajetória.

Mas isso não aconteceria no caso de cotas para o serviço público, na nossa realidade em que a estabilidade funcional converteu-se – de fato e de direito – numa verdadeira imunidade a qualquer aferição de competência. O regime legal dos servidores públicos – e jurisprudência dominante a respeito – torna praticamente impossível responsabilizar um servidor em razão de sua inaptidão, negligência, imperícia, displicência ou, até mesmo, por sua falta de assiduidade. Mesmo o estágio probatório, previsto na lei, tem alcance tão restrito, que somente se vê um servidor ser demitido quando há o cometimento de crimes e, mesmo assim, com muita dificuldade e burocracia. Dentre promotores e magistrados a situação é ainda mais grosseira, pois, mesmo diante do cometimento de crimes, a sanção mais comumente imposta é a simples aposentadoria.

Diferente de uma vaga na universidade, que é algo necessariamente transitório, o servidor nomeado literalmente “toma posse” do cargo que ocupa. Assim, ao invés de uma política de qualificação que coloque a vítima do racismo num patamar de equiparação para iniciar a competição, a cota num concurso para o serviço público esgota-se em si mesma. Os cotistas nos vestibulares podem enfrentar e vencer a estigmatização porque, na saída da faculdade, ninguém os poderá acusar de serem piores profissionais, pois terão demonstrado seu mérito ao longo de todo o curso. E, depois de graduados, somente conseguirão trabalho se demonstrarem competência contínua.

É certo que a configuração que a estabilidade funcional tomou é um vício e uma deturpação. Entretanto, é uma configuração legal e admitida pela jurisprudência. Logo, é uma realidade que deve ser necessariamente considerada na análise da constitucionalidade de qualquer política social que se queira aplicar sobre os programas de seleção para o serviço público. Assim como a análise de constitucionalidade das políticas afirmativas no ensino superior devem ser pensadas para a realidade dos vestibulares brasileiros, a análise de constitucionalidade de políticas afirmativas nos concursos para o serviço público deve considerar a realidade jurídica brasileira. Por exemplo, não se pode simplesmente transplantar descontextualizadamente argumentos específicos de políticas de seleção adotadas em universidades de outros países, mas que não encontram paralelo entre nós. Do mesmo modo, a análise de constitucionalidade de cotas raciais no serviço público deve partir dos princípios vigentes na nossa prática administrativa.

E nossa prática administrativa aponta para o fato de que – talvez com as únicas exceções dos cargos militares e dos cargos diplomáticos – não existem verdadeiros planos de carreira no serviço público federal. Fora daquelas exceções, os planos de carreira do serviço público não passam de tabelas de progressão salarial horizontal (no tempo), sem quaisquer distinções de tarefas entre os níveis da “carreira”. E, mais grave que isso, não há mecanismos de demissão em razão da incompetência do servidor.

Talvez o ato administrativo do TST, citado no início, por se aplicar a contratos temporários e por permitir a substituição dos prestadores com baixo desempenho, talvez possa vencer esses óbices. Entretanto, uma política que pretenda aplicar o critério racial aos concursos para cargos públicos, tal como pretende o PL 6.738/13, somente poderia ser admissível depois de intensas reformas no serviço público. Reformas que estruturassem verdadeiras carreiras. Que permitissem a progressão vertical a cargos definidos em razão de suas atribuições. E, sobretudo, que tornassem efetiva a possibilidade de responsabilização, e demissão, dos servidores inaptos ou negligentes, com base em regulares aferições de desempenho, de modo que se exigisse do servidor que demonstrasse competência não apenas no concurso de ingresso, mas em toda sua carreira.

É verdade que as críticas feitas aqui se dirigem ao próprio regramento jurídico dominante no Direito Administrativo. Todavia, se por um lado ainda não há mecanismos continuados de aferição de competência, nem de efetiva responsabilização do servidor inapto ou negligente, por outro lado é inequívoco que, pelo menos nos concursos públicos, têm sido privilegiados critérios de seleção meritocráticos. Para se justificar exceções com base na identidade racial, seria preciso demonstrar como tais exceções se prestariam ao combate do racismo. Porém, segundo nos parece, a mera previsão de uma cota de ingresso não contribuirá para esse objetivo. Pelo contrário, uma política que se esgota no ato da nomeação do servidor apenas reforçaria estigmas raciais, na medida em que o objetivo não é a equiparação das condições de competição, tal como se dá nas cotas para a universidade, mas a simples obtenção do status de servidor público.

A crítica aqui apresentada pode, sem dúvida, ser estendida ao art. 37, VIII, da Constituição, que estabelece que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. Essas também são cotas fixas que se esgotam com a nomeação do servidor deficiente. Todavia, a existência de uma exceção expressa no texto da Constituição não significa que toda e qualquer cota para o serviço público será automaticamente constitucional. O art. 37, VIII, pode ser utilizado como princípio orientador que atesta a possibilidade de que o ingresso no serviço público é suscetível de ser objeto de políticas públicas de combate à discriminação. Porém, a própria Constituição prevê que se trata de uma medida excepcional, devendo, pois, ser mantida como exceção. Para se admitir a constitucionalidade de cotas nos cargos públicos em outras situações além daquela prevista no art. 37, VIII, parece-me indispensável que se demonstre como essa medida, para além da concessão de status, cria condições efetivas para a conquista autônoma da igualdade por parte de seus beneficiários. Só assim, creio, essas políticas não serão meras concessões paternalistas, mas ferramentas disponibilizadas aos cidadãos para que possam lutar pelo reconhecimento de seus próprios direitos.

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Democracia bloqueada http://www.criticaconstitucional.com/democracia-bloqueada/ http://www.criticaconstitucional.com/democracia-bloqueada/#comments Thu, 13 Mar 2014 20:55:25 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=707 Por Miguel G. Godoy[1]

 

O objetivo deste ensaio é mostrar como uma concepção exigente de democracia – a democracia deliberativa – pode nos fazer repensar como  nos tem sido negado um direito tão básico quanto fundamental: a participação ativa e direta dos cidadãos na vida político-democrática de nosso país.

Apesar da Constituição de 1988 estabelecer logo em seu art. 1°, parágrafo único, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente, não temos tido, além do voto, muitas outras formas de participação e controle diretos sobre as instituições representativas do povo. Não é à toa que Paulo Bonavides, um dos principais juristas do Brasil, ao tratar da democracia participativa asseverou que “somos uma democracia bloqueada, uma democracia mutilada, uma democracia sem povo”. Essa declaração é uma denúncia, representa uma indignação, uma indignação compartilhada, pois a democracia no Brasil é muito mais palavra do que ação. Ela é, quase sempre, mero substantivo, quando muito um adjetivo, mas poucas vezes ela é prática, é ação. É contra esse bloqueio à participação direta do povo, e em favor do que estabelece nossa Constituição, que devemos, pois, resgatar o significado de democracia hoje. Nesse sentido, tem se destacado, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, a concepção deliberativa de democracia.

A democracia deliberativa parte da ideia de que um sistema político valioso é aquele que promove a tomada de decisões imparciais, por meio de um debate coletivo com todos os potencialmente afetados pela decisão, tratando-os com igualdade. A ideia de avaliar a opinião de todos aqueles potencialmente afetados parece, assim, responder à intuição básica de que todos são iguais e devem ser tratados com igual respeito e consideração.

A principal virtude da democracia deliberativa é, assim, a de que ela promove e facilita a discussão pública. A discussão assume um papel central para a democracia deliberativa porque por meio dela se eliminam possíveis erros fáticos e lógicos que se apresentam nos argumentos. Ou seja, por meio da deliberação os sujeitos apresentam suas convicções perante os outros, os quais atuarão não como meros receptores daquela informação/opinião, mas como verdadeiros filtros. Essa dinâmica permite, ainda, que, além da identificação de possíveis equívocos, se incremente o argumento que até então estava sendo exposto com a adição de novas informações e opções, que eram ignoradas ou desconhecidas. Por isso a discussão é tão importante, pois é por meio dela que não apenas se retifica ou refina o argumento, mas também se conhecem os pontos de vista e interesses dos demais.

A discussão também apresenta um outro benefício, o seu caráter educativo. O processo deliberativo de exposição de opiniões, escuta dos argumentos etc., abre espaço para a autoeducação daqueles que estão debatendo, para a melhora de seus raciocínios, de sua convivência em comunidade. A deliberação pública também tende a forçar as pessoas a modificarem seus argumentos de tal forma a torná-los mais aceitáveis pelos demais. E é justamente esse procedimento, a discussão e deliberação públicas, que tende a favorecer a formação do consenso e a tomada de uma decisão imparcial.

Nesses termos, concebe-se a democracia como um processo orientado à transformação. Processo este que se opõe à construção social alicerçada no status quo e foge da posição individual e egoísta para atuar em favor de uma posição coletiva, fundada exclusivamente em um processo de construção e reflexão coletivas. Daí a defesa intransigente por uma democracia deliberativa que inclua os cidadãos no processo de tomada de decisões.

Essa perspectiva de democracia nos mostra, portanto, em primeiro lugar que não há democracia sem povo e, em segundo lugar, que só pode haver democracia com a necessária participação direta e igualitária dos cidadãos nos assuntos coletivos de sua comunidade.

No entanto, no Brasil, a falta de mecanismos de participação direta do povo na vida político-institucional do país e a falta de amplos mecanismos de controle popular sobre os representantes do povo demonstram como a atual representação política continua distante e separada dos cidadãos. Esse arranjo institucional distante e separado do povo ignora o elemento mais fundamental de uma discussão que busca dar conteúdos e limites à vida pública do país – o próprio povo. É um sistema institucional que se diz democrático, mas é avesso ao povo. É uma representação política que padece de demofobia. É uma contrafação do princípio democrático e um falseamento do princípio republicano[2]. Quando se alija o povo de um diálogo sobre seu país e deixam-se as principais decisões de uma comunidade somente nas mãos de representes e agentes governamentais distantes do povo, nega-se o fundamento da própria Constituição – o de que todo o poder emana do povo e por ele também deve ser exercido diretamente.

Enquanto essas distorções permanecerem, continuaremos a ser uma democracia bloqueada e sem povo e a palavra democracia continuará a ser mero substantivo retórico.

 


[1] Miguel Gualano de Godoy é Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia da UFPR. Pesquisador Visitante na Universidade de Harvard. Advogado.

[2] COMPARATO, Fábio Konder. Brasil: verso e reverso constitucional. Disponível em: http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/25-anos-da-constituicao

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El Neoconstitucionalismo en Latinoamerica http://www.criticaconstitucional.com/el-neoconstitucionalismo-en-latinoamerica/ http://www.criticaconstitucional.com/el-neoconstitucionalismo-en-latinoamerica/#comments Wed, 26 Feb 2014 16:02:05 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=688 por Alex Valle Franco*

El neoconstitucionalismo es una nueva teoría jurídica que busca transformar el Estado de Derecho en el Estado Constitucional de Derecho, para eso plantea mayor intervención del Estado y la creación de espacios democráticos igualitarios y de respeto a los derechos humanos. La Constitución se vuelve vinculante en las relaciones sociales tanto públicas como privadas a través de reglas y principios con un contenido programático y axiológico. La presencia del neoconstitucionalismo como una nueva teoría jurídica[1] ha generado en la actualidad numerosos debates jurídicos.[2] Los juristas se preguntan si dicha teoría supera el constitucionalismo liberal clásico del siglo XVIII y XIX al grado de convertirse en teoría jurídica independiente[3] o si solo asume elementos con un alto contenido de innovación que hace novedoso su estudio pero que de ninguna manera constituye una nueva teoría constitucional.[4] El neoconstitucionalismo como una teoría jurídica tiene un origen múltiple en el que se pueden identificar tres elementos que han contribuido a su configuración como una nueva teoría del constitucionalismo. Existe un elemento que describe su origen histórico, un elemento que explica su origen material y un elemento que muestra su origen teórico.[5]

Elemento histórico.- varios autores coinciden en señalar que el elemento histórico que dio origen al neoconstitucionalismo tuvo lugar en Europa después de la Segunda Guerra Mundial y que fue una consecuencia de las violaciones masivas y sistemáticas de los derechos humanos experimentadas en los regímenes fascistas de Alemania, Italia y España.[6] Por eso, los profundos cambios en dichos países después del conflicto bélico no fueron una casualidad, dichos cambios se evidenciaron tanto en su sistema jurídico como en su modelo de Estado.[7]

Elemento material.- El profesor italiano Luigi Ferrajoli afirma que el constitucionalismo surgió como reacción al colapso de la capacidad reguladora de la ley.[8] El carácter nominalista de las constituciones liberales clásicas del siglo XVIII, XIX y primeras décadas del siglo XX no respondió a las necesidades sociales, políticas y económicas de cada época.[9] Como respuesta a dicho fracaso, surgieron varias Constituciones europeas de la posguerra,[10] diseñadas principalmente para limitar el poder político y permitir la inclusión de mecanismos procesales de protección de los derechos fundamentales.[11] Estas constituciones se caracterizaron por el pragmatismo y fueron denominadas constituciones materiales.[12]

Elemento teórico.- varios autores aseguran que la elaboración teórica del neoconstitucionalismo se evidencia con la sistematización de trabajos de la Escuela de Génova, representada por Paolo Comanducci, Ricardo Guastini y Susanna Pozzolo.[13] De hecho a Pozzolo se le atribuye el Begriff  “neoconstitucionalismo” dado que ella lo mencionó por primera vez en el XVIII Internationale Vereinigung für Rechst- und Sozialphilosophie celebrado en Buenos Aires en el año de 1997.[14] Sin embargo existen autores que señalan investigaciones de juristas europeos aunque no bajo el mismo nombre, pero que incluyen similitudes respecto de los contenidos.[15]

En Latinoamérica el neoconstitucionalismo se desarrolló bajo dos particularidades propias: 1) La exigencia de una nueva corriente constitucional surgió gracias a las reivindicaciones populares promovidas por los movimientos sociales de la década de los ochenta como reacción a las nefastas consecuencias de las dictaduras militares de los setenta;[16] y, 2) Ante el fracaso del modelo constitucional liberal europeo adoptado de forma literal en varios países de latinoamericanos fue necesario el desarrollo de un modelo que considere las necesidades sociales, históricas y económicas propias de la región. El profesor español Carlos Villabella señala que al término del siglo XX en América Latina se contabilizaron más de 218 constituciones, lo cual evidencia una historia frágil del derecho constitucional en la región.[17] La intención del neoconstitucionalismo en Latinoamérica según Villabella “fue configurar textos formalmente modernos y que materialmente impulsen la transformación de la sociedad” [18] a través de tres objetivos: 1) la estabilidad democrática, a través del control parlamentario y de mecanismos que disminuyan el hiperpresidencialismo; 2) el fortalecimiento de los derechos humanos y el reconocimiento de derechos de grupos indígenas; y, 3) mayores estándares de gobernabilidad y de control constitucional.[19] Es necesario indicar que no existe consenso en cuanto a su definición debido a que el término es considerado “ambiguo”.[20] En los textos de derecho constitucional se pueden encontrar varias denominaciones para referirse al “neoconstitucionalismo”, entre las más conocidas tenemos: Constitucionalismo Deliberativo (Santiago Nino), Constitucionalismo Garantista (Luigi Ferrajoli), Constitucionalismo de los Derechos o Constitucionalismo Argumentativo (Luis Prieto Sanchís), Constitucionalismo Contemporáneo (Miguel Carbonell).

 

* Alex Valle Franco, ecuatoriano, doctorando en Derecho Internacional Público, Universidad de Bremen-Alemania. Master en Sociologia (FLACSO 2011) y Master en Derechos Humanos (UASB 2009). Docente en la Universidad Católica y Universidad Andina del Ecuador.

 

Bibliografía:

Aguilera, Rafael, Neoconstitucionalismo, Democracia y Derechos Fundamentales, Porrúa, México 2010.

Ahumada Ruíz, La jurisdicción constitucional en Europa, Madrid, Thompson- Civitas, 2005.

Ávila, Ramiro Neoconstitucionalismo Transformador. “El Estado de Derecho en la Constitución de 2008, Abya Yala-UASB, Quito 2011.

Carbonell, Miguel, “Teoría del Neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos”. El neoconstitucionalismo en su laberinto, en Miguel Carbonell Ed. TROTTA, Madrid 2007.

Ferrajoli, Luigi, Pasado y Futuro del Estado de Derecho, en Miguel Carbonell, “Teoría del Neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos”. El neoconstitucionalismo en su laberinto, Ed. TROTTA, Madrid 2007.

Sastre, Santiago, La ciencia Jurídica ante el Neoconstitucionalismo, en Miguel Carbonell, “Teoría del Neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos”. El neoconstitucionalismo en su laberinto, Ed. TROTTA, Madrid 2007.

Susanna Pozzolo, Neoconstituzionalismo e positivismo giuridico, Torino, Giapichelli, 2001; und, Leonardo García Jaramillo, Los Argumentos del Neoconstitucionalismo y su Recepción, en Miguel Carbonell y Leonardo Jaramillo, Ed. TROTTA, Madrid, 2010.

Viciano Roberto y Rubén Martínez, Fundamento Teórico del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano, en “Estudios  Sobre el Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano”, Roberto Viciano y Rubén Martínez  Eds., Tirant Lo Blanch, Valencia 2012.

Viciano Roberto y Ruben Martínez, Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latinoamericano, en “Crítica y Derecho-2. Política, justicia y Constitución”, Luis Fernando Ávila, Ed. Corte Constitucional Ecuatoriana, Ecuador 2011.

Viciano Roberto y Rubén Martínez, ¿Se puede hablar de un nuevo Constitucionalismo Latinoamericano como corriente doctrinal sistematizada? Universidad de Valencia 2010.

Villabella, Carlos Manuel, El Derecho Constitucional del Siglo XXI en Latinoamérica: un cambio de paradigma, en Roberto Viciano Pastor y Rubén Martínez Dalmau, ¿Se puede hablar de un nuevo Constitucionalismo Latinoamericano como corriente doctrinal sistematizada? Universidad de Valencia 2010.



[1][1] Carbonell, Miguel, “Teoría del Neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos”. El neoconstitucionalismo en su laberinto, en Miguel Carbonell Ed. TROTTA, Madrid 2007, p. 9.

[2] Viciano Roberto y Rubén Martínez, ¿Se puede hablar de un nuevo Constitucionalismo Latinoamericano como corriente doctrinal sistematizada? Universidad de Valencia, 2010. Ver en:  http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf (Visita 13. 8.2013).

[3] Ahumada Ruíz, María, profesora española, sostiene que el neoconstitucionalismo es un nuevo modelo teórico que se asocia a una forma constitucional diferente y esquiva a las etiquetas tradicionales. En Ahumada Ruíz, La jurisdicción constitucional en Europa, Madrid, Thompson- Civitas, 2005, S. 80.

[4] Miguel Carbonell citando los debates entre Prieto Sanchís y García Amado, sostiene que el neoconstitucionalismo puede tratarse “de una etiqueta vacía que sirve para presentar bajo un nuevo ropaje, cuestiones que antes se explicaban de diversa manera”.

[5] He realizado esta clasificación con base a un planteamiento original del profesor mexicano Rafael Aguilera Portales, y posteriormente he añadido otros elementos de mi propia investigación. Rafael Aguilera, Neoconstitucionalismo, Democracia y Derechos Fundamentales, Porrúa, México 2010, p. 1-4.

[6] Entre estos autores tenemos a: Miguel Carbonell, Susanna Pozzolo, Luigi Ferrajoli, Luis Carlos Villabella, Roberto Viciano y Ramiro Ávila.

[7] En Ramiro Ávila, Neoconstitucionalismo Transformador. “El Estado de Derecho en la Constitución de 2008, Abya Yala-UASB, Quito 2011, p. 53.

[8] Ferrajoli, Luigi, Pasado y Futuro del Estado de Derecho, en Miguel Carbonell , Nota de pie 1, p. 18-21.

[9] Viciano Roberto y Ruben Martínez, Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latinoamericano, en “Crítica y Derecho-2. Política, justicia y Constitución”, Luis Fernando Ávila, Ed. Corte Constitucional Ecuatoriana, Ecuador 2011, p. 209.

[10] Se citan, entre otras, las constituciones de: Portugal de 1976, la de España de 1978, la Brasileña de 1988.

[11]Sastre, Santiago, La ciencia Jurídica ante el Neoconstitucionalismo, en Miguel Carbonell, “Neoconstitucionalismo(s)”,  Nota de pie 1, p. 239-243.

[12] Una constitución con carácter material significa para el presente caso, que está dotada de contenidos sustantivos (valores, principios, derechos, directrices) que dirigen el accionar del poder, su forma de organización e incluso la forma de adoptar decisiones. Luis Prieto Sanchís, El constitucionalismo de los derechos, en Miguel Carbonell, El neoconstitucionalismo en su laberinto, Nota de pie 1, p. 213.

[13] Rafael Aguilera, Nota al pie 5, p. 1.

[14] Susanna Pozzolo es investigadora del departamento de cultura jurídica de la Universidad “degli Studi di Genova”, defendió su tesis de doctorado en filosofía del derecho en la Universidad Estatal de Milán-Italia. En: Susanna Pozzolo, Neoconstituzionalismo e positivismo giuridico, Torino, Giapichelli, 2001; und, Leonardo García Jaramillo, Los Argumentos del Neoconstitucionalismo y su Recepción, en Miguel Carbonell y Leonardo Jaramillo, Nota de pie 1, p. 212.

[15] El profesor español Rafael Aguilera Portales considera como padres de éste nuevo paradigma a Peter Häberle, Klaus Stern, Böckenforde y Martín Kriele.

[16] Roberto Viciano y Rubén Martínez, Fundamento Teórico del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano, en “Estudios  Sobre el Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano”, Roberto Viciano y Rubén Martínez  Eds., Tirant Lo Blanch, Valencia 2012, p.18.

[17] Carlos Manuel Villabella, El Derecho Constitucional del Siglo XXI en Latinoamérica: un cambio de paradigma, en Roberto Viciano Pastor y Rubén Martínez Dalmau, Nota de pie 9, p. 56.

[18] Carlos Manuel Villabella, Constitución y Democracia en el Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano, Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla IUS 25, México 2010, p. 55.

[19] Carlos Manuel Villabella, Nota de pie 18, p. 55.

[20] Susanna Pozzolo, Reflexiones sobre la Concepción Neoconstitucionalista de la Constitución, en el “Canon Constitucional”, Nota de pie 1, p. 165.

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Esclarecimentos de Crítica Constitucional em relação às acusações de Reinaldo Azevedo http://www.criticaconstitucional.com/esclarecimentos-de-critica-constitucional-em-relacao-as-acusacoes-de-reinaldo-azevedo/ http://www.criticaconstitucional.com/esclarecimentos-de-critica-constitucional-em-relacao-as-acusacoes-de-reinaldo-azevedo/#comments Mon, 24 Feb 2014 07:00:16 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=678

Nos últimos dias, em virtude da publicação do texto “O Grande Jurista“, da autoria do professor Juliano Zaiden Benvindo, o blog Crítica Constitucional alcançou certa visibilidade no cenário nacional. Em resposta ao texto, o blogueiro Reinaldo Azevedo fez diversas insinuações quanto à natureza do trabalho desenvolvido no blog e que demandam esclarecimento.

O objetivo do presente Editorial não é convencer o nosso colega blogueiro do seu equívoco, mas prestar informações para que nossos leitores avaliem quem está com a razão. Seguimos, nessa linha, o conselho do filósofo inglês John Stuart Mill que, no ensaio Sobre a Liberdade, lançou as bases de boa parte do que entendemos ser o cerne da liberdade de expressão. Segundo o filósofo, é importante que as pessoas sejam livres para defender suas ideias – por mais absurdas que pareçam – porque somente pelo confronto e pelo debate as melhores ideias poderão se sobressair.

Segundo Reinaldo Azevedo, o artigo foi colhido em “algum blog sujo financiado por estatais”. A acusação é grave. Gravíssima. E falsa. Mentirosa! Crítica Constitucional não é, nem nunca foi ou será, financiado por qualquer empresa estatal, governo ou partido político. Este blog foi idealizado no final de 2012, quando os quatro editores – todos estudantes de pós-graduação (mestrado ou doutorado) da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – decidiram inaugurar um espaço plural de crítica a questões ligadas ao constitucionalismo. E tudo no blog foi pago com o dinheiro do salário recebido pelos editores no exercício de suas ocupações profissionais. Não há nenhum centavo de doações externas, entidades políticas, organizações não-governamentais ou o que quer que seja. Isso pode ser percebido, por exemplo, na simplicidade do layout do blog.

Ao contrário de Reinaldo Azevedo, não temos patrocinadores. Não há uma única propaganda em todo o blog. Nós mesmos financiamos nosso trabalho e isso dá a Crítica Constitucional a autonomia e independência necessárias para cumprir sua função institucional, que pode ser lida na página “Sobre o Site“:

Crítica Constitucional é um blog organizado por estudantes da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, que tem por objetivo discutir questões ligadas ao direito constitucional.

Mas não buscamos fazer uma abordagem tradicional. O nome do blog, Crítica Constitucional, evoca ao menos duas tradições bastante consolidadas na filosofia política, a marxista e a kantiana – o que, de certa maneira, espelha a experiência acadêmica dos autores.

A primeira dessas tradições, que mais tradicionalmente está associada ao vocábulo “crítica”, é a marxista. Esta abordagem busca revelar as contradições inerentes à estrutura social vigente para, com isso, tornar possível pensar e implementar alternativas institucionais. A tradição kantiana, por sua vez, enxerga na crítica um caminho para examinar os pressupostos normativos das instituições, o que também traz à tona a reflexão sobre a adequação da prática institucional à teoria subjacente a elas.

Evidentemente, as duas tradições abrem possibilidades bastante diversas de análise. E é precisamente esta diversidade que esse blog busca manter. Os autores têm trajetórias de pesquisa bastante diversas – passando tanto por autores mais próximos do meio jurídico, como Jürgen Habermas, Niklas Luhmann, Ronald Dworkin, Jeremy Waldron e John Rawls, entre outros, quanto por autores de outras áreas do conhecimento, como filosofia, economia, sociologia e antropologia.

Nesses termos, Crítica Constitucional é um espaço aberto para todos os que desejarem se manifestar com alguma qualidade. Seguimos a ferro e fogo o princípio de Mill, e nossos editores e autores têm independência para sustentar suas posições críticas quanto ao direito constitucional brasileiro. Tudo em Crítica Constitucional  foi pensado com esse objetivo. O termo “Crítica”, por exemplo, decorre de duas tradições opostas e relevantes na filosofia moral e política – o marxismo e o liberalismo kantiano.

A escolha dos editores também seguiu esse princípio. Temos editores liberais e editores mais ligados à sociologia – de origem marxista – da escola de Frankfurt. Temos editores religiosos e editores ateus. Temos editores “vermelhos” e “azuis”.

Os textos de nossos autores demonstram essa pluralidade. Temos a certeza, por exemplo, de que Reinaldo Azevedo teria, eventualmente, concordado com o texto publicado em novembro de 2013, no qual o editor Fábio Almeida teceu várias críticas aos regimes de Cuba e Venezuela. Em seguida, Maurício Palma efetuou críticas ao texto, mostrando sua discordância. Livre mercado das ideias é isso: um escreve, o outro lê e rebate. E o debate prossegue. Como deve ser em uma democracia.

Exatamente por isso, todas as publicações levadas a efeito no blog são pautadas pela abertura ao diálogo, para a compreensão da importância em enxergar a diferença, marca das nossas complexas sociedades plurais. É precisamente dessa postura que luta contra as concepções do direito e da política focadas na instrumentalização simplista de instituições e pessoas, que em nada contribuem ao debate, mas muito ao contrário, infantiliza-o, que o site se orienta. Pautamo-nos pelo ideal de construir um espaço de reflexão, não necessariamente acadêmica, e, apesar do curto espaço de tempo, esta já é uma tentativa reconhecida por alunos e professores.

Estamos mal acostumados no Brasil. Ainda não sabemos lidar com críticas no mundo acadêmico, político e jurídico. Creditamos a diversidade de opiniões à inimizade e à necessária exterminação do outro. Não aprendemos ainda que é possível – e, mais do que isso, preciso – ter pluralidade.

Somente a partir dessa percepção é possível travar um debate sério, em que sejam debatidas ideias e não fonte de financiamento, parentesco ou formação de quem está falando. Todo argumento lastreado em elementos extrínsecos a seu conteúdo é falacioso.

Reinaldo Azevedo acusa-nos de sermos um “blog sujo”. Mas o que é sujeira?  Sujeira é lançar acusação de que somos financiados por entes públicos. De que o professor Juliano Zaiden Benvindo, que logrou obter nota máxima em sua tese de doutoramento defendida na Alemanha e, além de outros trabalhos, já publicou livro em uma das editoras acadêmicas mais renomadas do planeta, tem suas opiniões vinculadas a um partido de que não é membro e que só as sustenta por conta de suas relações de parentesco.

Ressalte-se, ademais, que a acusação se revela contraditória na própria trajetória de Reinaldo Azevedo, pautada na defesa intransigente da liberdade de expressão. As críticas do professor foram pautadas no exercício desse direito e na liberdade de cátedra, direitos plenamente  assegurados na Constituição Federal.  A resposta de Azevedo, por outro lado, pautou-se tão-somente no recurso à falácia ad hominem, e não ao enfrentamento dialógico do conteúdo do texto.

Oferecer resposta a um texto que não se ocupa de debater ideias, mas antes se mostra como mero instrumento de ataque, é algo difícil. Difícil porque, ao avaliar o grau das ofensas escritas pelo seu autor, surge sempre a dúvida: ofende porque não conhece ou por pura má-fé? Por não conhecer o tema tratado ou por fazer pouco caso dos argumentos em debate e preferir o dissimulado ad hominem de aplausos fáceis?

Deixamos a nosso leitor a tarefa de responder por si só a essas perguntas.

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“O Grande Jurista” http://www.criticaconstitucional.com/o-grande-jurista/ http://www.criticaconstitucional.com/o-grande-jurista/#comments Tue, 18 Feb 2014 17:41:46 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=670 Por Juliano Zaiden Benvindo

Professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília

Doutor em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim

Pesquisador em estágio pós-doutoral na Universidade de Bremen

 

Bem, às vezes é importante ser direto. No âmbito do direito, em especial, parece que vivemos fantasias construídas. Mas a academia deveria ser o palco para dizer umas boas verdades. Os norte-americanos, por exemplo, fazem isso o tempo todo, como também aqui os alemães.

No Brasil, contudo, infelizmente, a cultura constitucional é voltada para bajular o que temos. Nossa cultura ainda é fortemente marcada pela personalização das relações, não se construindo uma possível percepção de que criticar um trabalho, uma decisão, um texto, entre tantas outras atividades, possa ser algo diverso do que uma crítica pessoal. Toda crítica se torna, assim, uma crítica à pessoa que realizou aquela atividade e, não, à própria atividade. E, portanto, ninguém critica um trabalho, porque fica com receio de que o outro fique triste, magoado, raivoso e também que o contra-ataque se dê no âmbito pessoal. Projeta-se uma bola de neve de questões pessoais, que pouco contribui para o debate.

Questões estratégicas caminham também nessa direção. Historicamente, as faculdades de direito são estruturadas pelo jurista profissional, aquele que é advogado e professor, juiz e professor, promotor e professor e assim vai. Não se construiu, assim, uma cultura de independência crítica, até por questões naturalmente explicáveis da natureza humana. Um advogado, afinal, não vai ficar muito confortável tecendo críticas a juízes, porque não é mesmo inteligente, sob o viés estratégico, fazê-lo. E assim vai.

Logicamente, uma coisa não significa a outra (há vários acadêmicos que exercem profissões jurídicas tradicionais que são bastante críticos da realidade, como também há vários acadêmicos típicos que nada o fazem), mas esse é um diagnóstico importante. Aqui mesmo na Alemanha, há uma discussão a respeito da independência dos professores em relação às pretensões de assumirem posição no Tribunal Constitucional, na medida em que, devido às questões políticas, especialmente na área do direito público, a crítica à prática jurídica tem sido mais suave do que em outras áreas.

Enfim, independência acadêmica é algo importante, exatamente para termos liberdade de fazermos as devidas críticas, quando reputamos relevante. Esse é o papel da academia.

Pensando nisso, hoje resolvi fazer uma crítica acadêmica direta sobre o que tanto falamos a respeito do “grande jurista”. Reparem que não é uma crítica pessoal – lembrem-se da minha observação acima -, mas uma opinião de alguém que pesquisa e trabalha na área a respeito da qualidade acadêmica da produção de outrem. Naturalmente, divergências existem e são saudáveis. O debate, portanto, está aberto. Mas é preciso dar início a esse tipo de reflexão. É fundamental pararmos de bajular a realidade jurídica. Devemos exercer mais nossa independência. Eis a crítica:

Depois de lermos constitucionalistas e teóricos do direito do porte de um Jack Balkin, Daryl Levinson, Sanford Levinson, John Rawls, John Hart Ely, Ronald Dworkin, Mark Tushnet, Cass Sunstein, Bruce Ackerman, Christoph Möllers, Laurence Tribe, Marcelo Neves e tantos outros, dói demais ouvir de pessoas o seguinte comentário: “apesar de tudo, Gilmar Mendes é um grande autor do direito e um jurista respeitado”.

Bem, minha opinião: é um dogmático, compilador de jurisprudência e de alguma doutrina, mas não tem nada de especial. Como teórico, fica bem a desejar. Seu raciocínio tende mais para uma perspectiva “manualesca” do que efetivamente acadêmica. O propósito também parece ser mais construir obras que dão lucro (aliás, muito lucro), do que aprofundar temáticas complexas do constitucionalismo. Vende seus livros como água, mas que pouco agregam a nossa cultura constitucional. Quando tenta fazer algo, muitas vezes parece ligado a uma estratégia de poder, com uma ênfase clara em dar ao STF poderes que nem de longe tem ou deveria ter. Aliás, em várias passagens, há falácias históricas e teóricas que, para um bom entendedor, doem na alma. Verdades construídas e bem longe de serem constatadas. Traduções fora de contexto. Autores fora de contexto. Cansei de ver exemplos, já escrevi artigos a respeito e até mesmo orientei trabalhos nessa linha.

Muitos vão dizer que ele é o grande autor do controle de constitucionalidade brasileiro. Não nego que ele tenha uma relevância a partir de seus estudos nessa área e trouxe uma certa projeção do assunto no âmbito do direito constitucional. Escreveu, afinal, sobre esse tema em praticamente todos seus livros e na grande maioria de seus artigos. Do mesmo modo, esse tem sido o foco de suas orientações já há algum tempo.

Mas, vamos examinar cuidadosamente seus textos. Eles partem de uma lógica que se repete: 1) uma abordagem histórica do controle de constitucionalidade; 2) uma análise comparada do controle de constitucionalidade; 3) algumas observações sobre como poderia ser nosso controle de constitucionalidade. Com algumas leves variações entre seus textos, é esse o desenhar de seus estudos. Não se tem aqui muito mais do que uma descrição histórica (com saltos argumentativos e anacronismos problemáticos, na minha opinião), uma descrição do sistema de controle que serve de paradigma comparativo (também com algumas verdades altamente contaminadas por uma vontade de dar grandes poderes à Suprema Corte), e conclusões que caminham para esse mesmo objeto: é importante que o STF assuma uma postura tão forte como a do paradigma.

Fora os atentados teóricos a várias metodologias de direito comparado, que ressaltam bem os riscos da transposição de conceitos e métodos entre realidades jurídicas bastante diversas, existe um problema de lógica em várias das conclusões. As premissas adotadas são questionáveis, a forma de se interpretar o paradigma também e, naturalmente, a conclusão não poderia ser muito diferente. E essa lógica se repete em seus textos. Quando vai para outros temas, normalmente – aqui ainda mais evidentemente -, o seu grande trabalho é de compilação de jurisprudência e julgados.

As abordagens sobre direitos fundamentais normalmente não entram nos grandes debates que hoje se encontram a respeito do tema e, em algumas passagens, chegam a ser uma mera transposição de alguns conceitos que são muito utilizados aqui na Alemanha nos livros destinados aos alunos da graduação para fazerem o Exame de Estado. Porém, aqui mesmo na Alemanha, sabe-se que se preparar para o Exame de Estado é uma atividade estratégica de quem está definindo seu futuro naquele momento. Para quem já está no doutorado ou no âmbito da pesquisa, aquelas premissas são altamente questionáveis e problemáticas.

Em seus textos, não são os grandes livros de doutrina alemã que ali encontramos, salvo algumas passagens (muitas vezes descontextualizadas) de um autor ou outro (Häberle, Hesse, Alexy e cia.). Os institutos trazidos, do mesmo modo, são reproduzidos como verdades.

Vejam o caso do princípio da proporcionalidade, que tem várias abordagens e complexidades nem de perto por ele abordadas, e, do mesmo modo, o controle abstrato alemão, que nem de longe tem essa dimensão que seus textos aparentam dar, já que aqui o grosso dos julgados do Tribunal Constitucional – em torno de 97% dos casos – decorre do Verfassungsbeschwerde, que é uma reclamação constitucional que tem um caso concreto por trás (e mesmo que se diga que há uma abstração em algum momento, o caso está sempre lá de algum modo).

Tampouco há aprofundamento temático, predominando o tipo de análise panorâmica em que de tudo se fala um pouco. E suas conclusões caminham normalmente para dar esse ar colorido ao papel das cortes constitucionais.

Existe também uma evidente cronologia de seus textos que parece demonstrar que, depois de ter começado a trabalhar o tema do controle de constitucionalidade, nada muito novo apareceu. Seus melhores trabalhos são sua tese de doutorado e alguns escritos posteriores. Depois desse momento, praticamente o que se tem são repetições e atualizações. Surge um novo instituto, ele vai lá e descreve. Muda-se a jurisprudência, ele vai lá e descreve.

Enfim, sua grande capacidade encontra-se na atividade de descrição, o que não é um exercício mental dos mais complexos. Aliás, não há, em seus textos, nenhuma grande discussão complexa de direito constitucional. Se fala tanto no papel do STF, pouquíssimo se encontram discussões sobre separação de poderes no sentido mais dramático do termo. Se fala tanto em direitos fundamentais, não há profundos debates sobre os principais temas que os envolvem (teorias da justiça, teorias da interpretação jurídica a partir dos estudos mais densos a respeito – e há muitos textos maravilhosos -, teorias sociológicas e econômicas que lançam olhar sobre o tema). Enfim, muito aquém de uma pesquisa de fôlego.

Há um elemento da natureza humana que deve ser lançado aqui na equação. É humanamente inviável alguém escrever textos de fôlego querendo ser tudo na vida: ser Ministro, ser sócio de faculdade, ser professor. Não dá! Uma pesquisa séria demanda tempo, dedicação e muita leitura. Normalmente, os verdadeiros “grandes juristas”, quando escrevem um livro ou mesmo um artigo de fôlego, param suas atividades paralelas por um tempo, dedicam seu tempo a explorar os meandros do objeto de pesquisa, sujeitam-se às críticas e comentários de seus colegas. Enfim, o processo de produção acadêmica de qualidade é demorado. Um bom artigo pode demorar mais de ano para ser escrito. Um livro, então, nem se fala. Então, há um critério objetivo que pode ser aplicado aqui. A não ser que estejamos falando de um gênio – o que não é o caso -, é impossível, sob qualquer ângulo, alguém escrever, em um ano, tantos artigos e livros com alguma expectativa de qualidade.

Enfim, por todas essas razões, seus trabalhos não me parecem ser uma referência relevante para qualquer pesquisador sério de direito constitucional. Por isso, não é para mim um grande jurista sob o ponto de vista acadêmico. Estudantes que se apóiam em seus textos o fazem – espero – por um cálculo estratégico de futuro e, por isso, estão perdoados. Afinal, podem vir a ser cobrados por algo na frente (especialmente em um contexto em que concursos e a prática jurídica giram em torno de um constitucionalismo pouco aprofundado). Porém, como estudantes sérios, acadêmicos mesmos, espero que procurem fontes bem mais proveitosas. Em síntese, ler tais livros é, para mim, perda de tempo.

Este é um daqueles casos em que o poder, a fama e bastante malícia argumentativa projetam um autor para um patamar que não representa a qualidade de seus trabalhos. O poder puxa a fama e a fama puxa o poder. A qualidade, nesse contexto, fica em segundo plano, porque ela acaba deixando de ser, na equação, uma variável que agrega. Não há necessidade de escrever uma grande obra jurídica, simplesmente porque qualquer coisa mediana que se escreva será reproduzida por uma cultura jurídica que não questiona.

O que importa é o poder da fala ou a fama da fala, não o texto em si. Fazendo uma analogia com a música, é que nem ouvirmos aquilo que faz sucesso, porque é reproduzido pelos canais de televisão, pelas rádios e todo mundo canta. O fato de estar representado por uma grande gravadora que tem contratos com canais de televisão traz ao músico poder. Por outro lado, a reprodução de suas músicas nesses canais lhe traz fama. E tudo gira em torno de poder, fama e muito lucro.

Mas, no fundo, para quem tem um pouco de amor pela música, sabe que não é a Ivete que fará diferença, mas o Baden Powell, o Tom Jobim, o Ernesto Nazareth, a Dolores Duran, a Mayza Matarazzo, o Luiz Bonfá e tantos outros. Pois, afinal, não basta ser afinadinho – Chet Baker que o diga. Saber, portanto, compilar jurisprudência e doutrina com algumas conclusões seria o ser “afinadinho”. Mas isso é muito pouco. Em termos diretos, quero dizer que devemos ter menos “afinadinhos” e mais Chet Bakers. Em outros palavras, queremos ter, em nossa cultura constitucional, menos Ivetes e mais Badens.

Enquanto ficarmos bajulando esse perfil de “grande jurista”, perdemos a chance de olharmos para os devidos problemas de nossa realidade constitucional e passamos a reproduzir discursos como se verdades fossem. É aquele efeito “cobertor” sobre o outro olhar. Ao fecharmos os olhos para o “outro” e ao permanecermos no discurso do mesmo, a realidade constitucional não avança. Um único caminho se apresenta e se difunde, enquanto milhares de possibilidades existem em outras frentes – e, certamente, muito mais interessantes.

Por fim, como jurista respeitado, aí meus caros, a minha opinião já registrei em outras oportunidades. Respeito se ganha com atitudes, especialmente a partir da consciência do local da fala. Não me parece, ao menos para mim, ser o caso.

Moral da história: é um jurista e Ministro do STF. Isso pode soar muito, mas, fora o poder, me diz muito pouco.

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Entre “Civilização” e “Barbárie” (ou tinham umas pedrinhas no caminho do “rolezaum”): http://www.criticaconstitucional.com/entre-civilizacao-e-barbarie-ou-tinham-umas-pedrinhas-no-caminho-do-rolezaum/ http://www.criticaconstitucional.com/entre-civilizacao-e-barbarie-ou-tinham-umas-pedrinhas-no-caminho-do-rolezaum/#comments Fri, 31 Jan 2014 06:28:30 +0000 http://www.criticaconstitucional.com/?p=650 ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: PODE ENTRAR, “ROLEZAUM”!

Numa sociedade em que práticas interpretativas são um experimento que busca no “Direito Achado na Rede” (Paulo Rená da Silva Santarém) – uma das formas de expressão “lyriana” do “Direito Achado na Rua” (José Geraldo de Sousa Júnior) – o “debate público” precisa ser percebido a partir de “seus fragmentos” e inúmeras “verdades estilhaçadas”. Qual uma obra do cubismo analítico, de Georges Braque, ou de Pablo Picasso, a “verdade” está “por todas as partes” e não somente num “só lugar”.

Curiosamente, dois recentes incidentes na sociedade brasileira, que tem movimentado opiniões e ideias, trazem interessantes percepções para nossa esfera pública. Em ano de eleições gerais e de Copa do Mundo no Brasil, os “ecos platônicos” continuam a reverberar por meio de sombras e luzes que “dançam” nas paredes qual “pinturas rupestres” de nosso próprio tempo. Quais “versões”, “verdades” e “lógicas”, portanto, podem nos ajudar a nos enxergar(mos) – melhor e mais – nesse espelho “espeleológico”? Em pleno início de 2014 e “despertando” do clima de “férias acadêmicas”, esse é o desafio de estreia deste ano. A página “Professor Vila-Nova” propõe algumas “reflexões” a todos os amigos, leitores e interlocutores, nesse “diálogo cívico”, “entre a civilização e a barbárie”.

O mote, em todos os textos a seguir destacados, é o de ilustrar os potenciais de análise jurídica em torno de dois eventos recentes: o agravamento da crise penitenciária no Presídio de “Pedrinhas” (em São Luís, capital do Maranhão) e a repercussão jurídico-social do recente “movimento” dos “rolezinhos”, que tem “dado o que falar”, dentro e fora de redes sociais, para que os “corpos” e “ideias” de “brasileiras” e de “brasileiros” jovens possam circular (ou não) pelos “shoppings” nas cidades do país…

 

E AÍ? VAMOS DAR UM ‘ROLEZAUM’? (PARA PENSAR, GRAÇAS À CONSTITUIÇÃO, NÃO É NECESSÁRIO ‘HABEAS CORPUS‘!)

 

A seleção desses dois eventos não é casual. Não se trata de mera coincidência aleatória de acontecimentos ligados pelos limites e possibilidades de nossos “presentes” em constante crise.

A) Primeiramente, em perspicaz análise, Mayra Cotta e João Telésforo fazem, na coluna “Princípios Fundamentais” da Carta Maior, uma interessante provocação: qual a relação entre os “rolezinhos” e a crise em “Pedrinhas”? As palavras são empregadas no “diminutivo” mas a responsabilidade cívica, em ambos os casos, é no aumentativo.

B) Em meio ao desvelamento dos “falsos liberais”, Fábio Portela, em coluna na Página “Crítica Constitucional”, aponta os paradoxos e paradoxos que a noção de “liberdade” pode assumir, contra o próprio senso e garantia de “liberdades constitucionais”. Seja liberal, ou não, vale o alerta: existem liberais e liberais. Liberdades e liberdades. Como permitir que tais liberdades convivam num mesmo “Shopping Center”? Essa a reflexão que destacamos, com ênfase também para o adequado apanhado dos “fundamentos jurídicos” expressos nas diversas decisões liminares, num sentido, ou noutro, de nosso arquipélago judiciário.

C) Registro especial, também, ao artigo intitulado “Indigência jurídica do veto aos rolezinhos“, Fábio Sá e Silva, na já aludida “Princípios Fundamentais” da Carta Maior. Por meio da identificação das (in)consistências dos “usos” e “invocações” dos argumentos jurídicos para a apreciação das liminares em torno de uma categoria ainda não adequadamente decifrada pelo Judiciário em “seus diferentes processos e procedimentos”: o da emergência de novos (e novos) “sujeitos coletivos de direitos”. A distância entre a “indigência” e a “indulgência” parece se reduzir nessa tentativa de “tradução institucional”.

D) Em entrevista de Jessé de Souza ao periódico “Estadão’, surgem argumentos lúcidos e que tem sido pouco explorados pela opinião pública e, sobretudo, pela publicada. “O rolê da ralé” merece leitura por quebrar dois pré-conceitos e preconceitos. Primeiro, o desvelamento do “apartheid” social do racismo brasileiro (ainda invisível para alguns) em suas dimensões social, jurídica e econômica. Não se trata de uma aplicação distópica do Apartheid que o saudoso Nelson Mandela (o “Madiba”) encarou nos olhos. O “racismo de classe”, como define Jessé, é ainda mais radical. Enquanto na África do Sul, “brancos” e “pretos” são tidos, expressa e desenganadamente, como sujeitos diferentes (o mesmo vale para o caso estadunidense e da doutrina do “separate but equal” – dos “separados, mas iguais” contra os quais Martin Luther King Jr. nos fez e faz sonhar…). No Brasil, será que sequer existe racismo? Essa uma das percepções possíveis a partir da entrevista. A segunda é a inferição das insuficiências do “economicismo” para a leitura dessa complexa questão. Pobreza extrema tem de ser erradicada? Sim. Mas não somente a pobreza material? A cultural, educacional e individual-cívica também, sugere Jessé. Isso, contudo, não é só. Desigualdade extrema é problema também. Ela aparta (em vez de reconhecer). Esses os traços e cores aviltantes do “racismo à brasileira” que Olavo Bilac há muito denunciava. A “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, para alguns, não mais existe, mas, ainda que se admita isso (em tese), ainda há nos céus e mares brasileiros um sinal de que “os fantasmas” do Negreiro Navio ainda continuam a nos assombrar.

 

O NAVIO NEGREIRO NÃO NAUFRAGOU!

Segundo especialistas e indicadores oficiais de mortalidade do “jovem negro” (assustadoramente superiores aos do restante da população, conforme recentes pesquisas publicadas), assim como as taxas de encarceramento de presos no país (apesar do recente julgamento de ditos, segundo o STF, “crimes de colarinho branco” na AP 470 – o “Caso Mensalão”) e o ainda insignificante grau de reconhecimento de remanescentes de Quilombos (vide art. 68 do ADCT!) são apenas uns, de vários olhares, que o tema do “racismo à brasileira” pode despertar. A entrevista de Jessé põe o dedo nessa ferida aberta. E, percebam(os!), o corpo ferido, vivo ou morto, é predominantemente “negro” e “pardo” (segundo atestam os “dados” e “estatísticas”, pelo IBGE, “construídos”).

Em suma, tantas contribuições valiosas e instigantes nos parecem mais que oportunas em um ano que, a um só tempo, liga nosso jubileu de prata constitucional (os 25 anos de Constituição da República Federativa do Brasil!) com mais um experimento de nossa democracia em clima de ‘Copa do Mundo’, no Brasil.

“- Brasileiros e brasileiras!”, disse o Presidente jamais eleito, o ano é de eleições gerais, minhas concidadãs, meus concidadãos!

Só para ilustrar o próprio debate, da aparente “Civilizada Megalópole dos Shoppings” para a capital de um dos estados mais pobres e mais “negros” do país, o sistema penitenciário do Maranhão parece cair no esquecimento, com raras exceções, como é o caso ilustrativo do formoso texto de Ney Bello que nos apresenta o “boleto” dessa “conta” que ninguém quer pagar, mas, pela qual, senão “culpados”, somos todos “civicamente responsáveis”.

A questão não é só de “crise institucional”. Não! É de “responsabilidade cívica” de todo nosso “Povo Brasileiro” que, há muito, tanto Darcy Ribeiro – e tantas outras brasileiras e brasileiros – insistira(m) em nos apresentar.

 

(RE)CONHECEMOS, MESMO, “NOSSA” RESPONSABILIDADE CÍVICA PELOS CADÁVERES E PELAS TORTURAS EM PEDRINHAS?

(Re)conhecemos, mesmo, “nossa” responsabilidade cívica pelos cadáveres e pelas torturas em Pedrinhas?

Apesar de ter uma das populações carcerárias menos expressivas do país (o detalhe é que o Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo – atrás somente de EUA, China e Rússia), os “dez” governos e (des)-governos da oligarquia coronelista Sarney somente amplificam essa situação caótica de descaso num dos Estados bem representativo da pobreza e da corrupção que não são exclusivas – mas também – assolam estes “tristes trópicos”.

Mas, então, quem são “os presos” do Maranhão? São “brancos” da “classe média” que “sofre” com o aumento do IOF? São os grandes empresários (eles são “brancos” ou “pretos”?) que são açoitados pelo chicote de “nosso famigerado pibinho” ou pelas “garras e dentes” de um Leão – de zoológico ou de circo? – que com sua “carga tributária devoradora” ainda assegura taxas de lucro e de investimentos na bolsa e de juros bancários, para além das fronteiras nacionais, nada “salariais” para esses (também) “donos do poder”?

Podem(os) discordar. Ficarmos, ou não, “chocados”. Mas, ao abrirem as carceragens, quais eram os mais de 60 corpos estendidos no chão? Vocês foram conferir a “cor” dos cadáveres? A “dor” da “cor” dos torturados, já conferiu? Veja de novo! Eram “pretos” e “pobres”, em sua maioria? Ou, quiçá, minoria? Afinal, aqui parece que tudo é possível, não é mesmo? Onde está a visibilidade social desse massacre silencioso?

Há pena de morte no Brasil em “tempos de paz” (CRFB/1988, art. 5º, XLVIII, “a” c/c art. 84, XIX)? Ou estamos em “tempos de guerra”? A “condenação criminal” dá ensejo à perda dos direitos políticos (CRFB/1988, art. 15, III)? Isso envolve a perda da condição de “cidadão” na acepção ampla do termo? E de sua condição de “ser humano”? Afinal, por onde andam a “cidadania” (CRFB/1988, art. 1º, II) e a “dignidade da pessoa humana” (CRFB/1988, art. 1º, III)? Estamos a falar de “cidadãos” ou “inimigos de guerra”? De “mulheres” e “homens” ou de “animais” que sequer merecem proteção (Lei Federal 5.197/1967)? Ou merecem mesmo é “tratamento desumano ou degradante” (CRFB/1988, art. 5º, III)? Presos, definitivos ou provisórios, tem direito à preservação de sua integridade física e moral (CRFB/1988, art. 5º, XLIX)? Será que a Constituição da República Federativa do Brasil menciona “algo” a respeito?

O que incomoda mais a “opinião” que se diz “pública” e “nacional”? Caminhemos, de editorial, por editorial, até outro editorial e, assim, por diante… sigamos as trilhas, à direita, ou à esquerda, conforme a convicção política ou partidária dos (e)-leitor@s, eleitores e leitores. Há tantos editoriais quantos infinitos forem os mundos da palavra. Mas voltemos ao foco: a que se deve dar destaque nesta esfera pública em que tudo se diz ou se “publica”?

Repita-se. A que se deve dar destaque? À “vandalização” do “templo do consumo” – os Shopping Centers – pel@s “mulek” que sequer as regras da língua de Camões respeitam (sob largos protestos de “vendilhões do Templo” e o apoio do “Sinédrio Judiciário”)? Ou à tortura e ao extermínio bárbaro – uma verdadeira pena de morte disfarçada de civilizadasunidades de pacificação” – dos “criminosos estigmatizados”?

A esse respeito, segundo dados de agosto de 2013, em mutirão carcerário realizado pelo CNJ em Pedrinhas, 52% da população carcerária maranhense está na condição de “preso provisório” – isto é, pouco mais da metade sequer foi condenada e – o melhor? Ou o pior? – nem mesmo o Estado brasileiro assegura, com precisão, se o dado não é ainda mais aterrador. A radiografia desse “esqueleto nos armários penitenciários” é, lamentavelmente, para lá de fúnebre e cruel. O “choque” é não somente institucional, mas cívico-democrático também.

 

CIDADÃO(S) E A CAMINHADA… …PELAS RUAS DA CAPITAL

Entre “Civilização” e “Barbárie”, deixo a lembrança das “pedrinhas” de Drummond no caminho desse “rolezaum” (é assim mesmo que se “digita” ou “tecla” e é sem ‘sic). O saudoso Millôr Fernandes, certa feita, nos alertou: “Cidadão, num lugar onde não há nem sombra de democracia, apenas significa cidade grande”.

A abordagem de Leonardo Boff também parece ter considerável razão. Afinal, entre adolescentes “vândalos” e consumidores dos “Burgos”, entre “civilidades” e “barbaridades”, temos apenas (in)justas “grandes cidades segregadas e segregacionistas” ou, temos, cidadãs e cidadãos que enchem nossas cidades de sentidos (in)justos?

Fica lançada, no “ar que desmancha os sólidos conceitos”, essa provocação final que aponta que ‘nossa’ contemporaneidade não é só líquida.

Há “cidadãos” e “cidadãos”. E, ademais, uma longa caminhada chamada cidadania. A cidadania é andarilha. Tem a democracia no horizonte. Essa a razão de ser do seu caminhar. De sua caminhada de mãos dadas conosco, “com nosso povo”… … de onde “Todo poder emana…” (CRFB/1988, art. 1º, parágrafo único). De onde deve emanar o “poder”, mesmo?

E cantou o Castro Alves dos ‘escravos libertos’ e dos ‘libertos escravos’:

“-’stamos em pleno mar… Doudo no espaço

Brinca o luar – dourada borboleta;

E as vagas após ele correm… cansam

Como turba de infantes inquieta”.

Poderá a “inquieta turba de infantes ondas” sufocar o Navio, sob esse “doido” luar? Pode correr? Ou não? Pode cansar? Ou não? No limiar dessa escura noite, nem todos os “gatos” são “pardos”. Há “brancos” e “negros” também e um “mar pleno” de “perigos”, “veredas” e “liminares e liminares”. Poderá o nosso Ulisses sobreviver amarrado ao mastro da embarcação que singra e sangra os mares?

Uma borboleta dourada páira no ar qual vagalume, que vaga. Pisca-pisca, no horizonte. Luz e sombra, no abraço misterioso entre o céu e o mar. Há sombra e há luz, mas o que nos sobra dessas “meias-verdades” e “meias-mentiras”?

“Borboleta é uma cor que avoa”, ora pois (!), disse Manoel. Manoel é brasileiro. Esqueçamos a dodecassílaba Portugal de Luís e dos Lusíadas! A quem pertence a “riqueza dourada” desse estrelado “lábaro constitucional”? Quem são os donos das constelações dos direitos que nos inspiram? Será que “ordem e progresso” traduzem o nosso firmamento democrático? Eis o roteiro de nossa odisseia cívica, que não agrada, nem a gregos, nem a troianos.

Ao som e sabor do rufar dos “Tambores de Mina ou de Crioula” do Maranhão, o carnaval só aparecerá com as águas do “verão”. E vocês “verão” que 2014 começou muito antes de mais “uma promessa de vida” no coração daquela “primavera brasileira”! “A criança erra na gramática mas acerta na poesia”, disse, o brasileiro Barros. E, de barro, vamos nos (re)fazendo brasileiras e brasileiros. Nossas gramáticas, nossos direitos. Eis a pedra filosofal de nossas alquimias constitucionais!

Enquanto isso, em Brasília, “nossa nova Jerusalém”, o tempo até que abriu naquela “tão longínqua” manhã… O Céu azul da Capital contrastava com gramados vazios da Esplanada. O Shopping amanheceu e anoiteceu fechado. O rolezaum (ou “rolezinho”) pode ter até perdido adeptas e adeptos, durante o dia… Mas “foi às ruas”, mesmo assim… O Shopping até “pediu desculpas” aos clientes, mas ficou sem os “consumidores”… Parece que foi “ontem”… (… pelas ruas da Capital das brasileiras e dos brasileiros!).

Daniel Vila-Nova é jurista e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mantém página institucional destinada ao ensino e à aprendizagem, intitulada “Professor Vila-Nova”, para o diálogo, com as cidadãs e cidadãos do país, sobre temas jurídicos na Rede Social Facebook (“hashtags” #ProfessorVilaNova ou #professorvilanova também permitem o acesso às postagens).

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