PEC 63/2013: o protagonismo judicial remuneratório é um fato inconteste?

Douglas Zaidan

Doutorando em Direito/UnB, pesquisador visitante na Universidad Pompeu Fabra (Barcelona)

Flávia Santiago Lima

Doutora em Direito/UFPE

A publicação do texto “Do subsídio ao teto: a PEC 63/2013 e o protagonismo judicial remuneratório”, no dia 24/05, suscitou um interessante debate, que transcendeu a análise da PEC e alcançou a questão da remuneração dos magistrados, membros do MP e das carreiras jurídicas em geral.

A divulgação do texto atingiu um dos objetivos propostos: integrar um variado grupo de interessados no tema, acadêmicos e representantes das carreiras jurídicas e, especialmente, os destinatários da mencionada emenda. Desenvolveu-se aqui nos comentários do blog e nas redes sociais uma profícua troca de idéias, dados e impressões sobre o funcionamento do nosso sistema de justiça, viabilizado pela velocidade e fluidez proporcionada pela rede, com o benefício da interação entre as distintas visões sobre um tema tão relevante.

A partir das reações ao texto e procurando dar continuidade ao debate através da réplica, as respostas e impressões quanto aos comentários serão classificadas nas seguintes categorias: 1) metodológicas; 2) normativas e 3) relativas ao mérito do artigo (o de que a PEC revela a existência do patrimonialismo refletido num protagonismo judicial remuneratório).

Antes, porém, consideramos válido fazer um registro sobre os inúmeros ataques pessoais e argumentos ad hominem dirigidos a nós, com o evidente objetivo de desqualificar a crítica exposta em razão da nossa posição de advogados públicos, sem prejuízo de considerações em torno dos elementos subjetivos que moveriam a crítica empreendida pelos autores.

Além de operadores do direito, os autores são pesquisadores na área do direito constitucional e têm entre os seus interesses acadêmicos o estudo das instituições judiciais, sobretudo as brasileiras. Neste sentido, reiteramos o texto, que veicula argumentos relacionados às pesquisas em curso num espaço de discussão independente de vinculação corporativa ou sindical de qualquer espécie[1].

O tipo de argumentação centrada na condição pessoal dos autores, por sua vez, parecer confirmar o diagnóstico das dificuldades da consolidação de uma esfera pública no Brasil, com as peculiaridades de discussões que repercutem sobre interesses corporativos de grupos sociais e profissionais específicos.

Passemos, então, à análise das críticas ao texto e à exposição das questões que estas geram para o trabalho em curso e outros direcionados à compreensão das questões remuneratorias dos membros de carreira no Brasil.

1) Metodológicas

A maior parte das críticas a serem consideradas nessa categoria apontam para duas direções: A) os dados deveriam ter incluído outras informações, como os gastos com tributação e previdência; B) a escolha dos países europeus comparados não foi adequada, considerando o PIB/per capita, desigualdades e o custo de vida.

A comparação em números absolutos das remunerações, em nosso ponto de vista, não prejudica a análise e as conclusões apontadas no trabalho. Para o propósito do recorte feito, a inclusão dos distintos dados sobre tributação[2] não parece relevante, especialmente porque esta atinge distintamente os brasileiros das diversas classes sociais, sobretudo os mais pobres – estrato em que os beneficiários da PEC não se incluem. Ou seja, se considerado o viés da política tributária, a disparidade entre as remunerações comparadas restaria ainda mais evidente.

Por sua vez, a escolha dos países indicados na comparação obedeceu a fatores não estritamente relacionados a questões econômicas e de renda. Nos casos da Alemanha, Espanha e Portugal, o fato de possuírem uma magistratura significativa, com critérios de competência mais próximos aos adotados no Brasil, cujas tradições jurídicas (civil law) desempenham um impacto relevante no direito brasileiro – institutos, doutrina e discursos – foram levados em consideração. À exceção da Suécia, que foi tomada como referência por possuir níveis de excelência na prestação de serviços públicos e indicadores sociais sempre lembrados quando em discussão o modelo de Estado de bem-estar.

A sugestão de comparação com países que possuam PIB/per capita mais próximos ao brasileiro, como Turquia, Romênia, Bulgária e Montenegro parece muito válida desde um enfoque comparativo econômico e pode ser aproveitada numa análise mais ampla sobre as distinções entre as remunerações dos juízes e membros do MP brasileiros e europeus. Contudo, há fatores que afastam esta comparação, como a representatividade dos sistemas jurídicos desses países para a organização judiciária nacional, as peculiaridades do processo de fortalecimento do judiciário neste ordenamentos e outros, que também devem ser abordados.

Os dados apresentados cumpriram a missão de, mais que provocar controvérsia, evidenciar as peculiaridades do nosso sistema de remuneração. Certamente que a busca de sistemas cuja realidade social é mais próxima à brasileira (PIB, indicadores sociais e outros) é conveniente e poderá ser objeto de outros trabalhos. No mesmo sentido, também consideramos válida a comparação entre os subsídios de outras carreiras do serviço público e seus equivalentes em outros ordenamentos, tema que merece atenção específica e aprofundada dos pesquisadores das ciências sociais.

De toda sorte, os aspectos apontados nas críticas não comprometem o resultado final da comparação proposta no texto: magistrados e membros do MP já recebem um elevado subsídio como compensação pelo exercício de sua atividade, em confronto com a remuneração paga naqueles países, sendo desproporcional quando tomado em referência o índice da renda do trabalho no Brasil.

2) Normativas

A discussão em torno da constitucionalidade da PEC 63/2013 despertou, comparativamente, menos interesse dos comentaristas.

Houve argumentação no sentido de que as normas do art. 39, par. 4o e art. 37, XI, da CF/88 não estão contempladas no rol das cláusulas pétreas, estando passíveis de alteração por força de emenda constitucional. Um dos comentários, aliás, observou que o STF possui entendimento favorável à alteração dos critérios remuneratorios no serviço público, sob a máxima da “ausência do direito adquirido a regime jurídico”, o que também não impediria, grosso modo, o estabelecimento dos quinquênios pela via da reforma[3].

Interessante perceber que, em momento algum, os fundamentos que justificaram a inserção no texto constitucional das regras atinentes ao teto e ao regime de subsídio foram cogitadas – limitação dos gastos públicos, transparência da remuneração de seus agentes e controle popular e dos órgãos legitimados para tal função. Deste modo, o atual sistema constitucional de remuneração dos agentes públicos não parece ser, para os comentaristas, um empecilho para as peculiaridades propostas pela PEC.

As gratificações e adicionais já implementados não foram questionados, tampouco a justificativa apresentada na PEC e os argumentos trazidos durante a deliberação parlamentar foram objeto de comentário específico.

Já os fundamentos expostos na justificativa da PEC – baixa atratividade, nível de responsabilidade, peculiaridades do exercício da função – que se refletiriam na elevada taxa de evasão da magistratura, não estão acompanhados de dados suficientes que confirmem essas premissas.

Para a hipótese sustentada pelo artigo, a alteração sugerida pela PEC esbarra num obstáculo normativo relevante em nosso sistema constitucional: o princípio da separação e equilíbrio entre os poderes, que implica no reconhecimento da relevância do exercício de todas as funções estatais e impede a disposição de estatuto privilegiado a um poder – e, consequentemente, aos seus membros – em detrimento dos demais.

Neste sentido, o estabelecimento de exceções específicas aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, se não contraria um dos princípios insitos à construção de um Estado de Direito, possuiria um efeito inverso: caracterizaria a preponderância do Poder Judiciário e de uma função essencial à Justiça quanto às demais funções estatais.

3) Mérito

O patrimonialismo também não foi contraditado; ao revés, foi ratificado pelas manifestações de identificação entre independência dos membros destas carreiras e remuneração, embora a constituição preveja um universo mais amplo de garantias às instituições e seus representantes.

É o que se verifica da relação – frequente nos comentários aqui do blog e em outros espaços – que se estabelece entre os elevados subsídios do Judiciário e do MP e a prevenção da corrupção entre seus membros. Todo o aparato normativo de garantias institucionais, fundamentado na relevância das funções exercidas, necessita de um reforço material: uma remuneração superior aos demais membros de poder – parlamentares e chefes do executivo, sobretudo. Isto sem prejuízo da necessidade de uma remuneração que, superior aos vencimentos médios pagos na iniciativa privada, possa manter seu status diferenciado.

Tampouco a possibilidade de que as associações utilizem-se de seu estatuto constitucional para negociar, na via legislativa, seus interesses corporativos, foi discutida. A ausência de comentários sobre esse ponto pode ser apenas uma evidência de que o público, em geral, e a comunidade juridica, em particular, já tenham naturalizado a relação entre cargo/ benefício remuneratório.

Os comentários destacaram-se, como visto nos tópicos anteriores, pelo debate, mas também autorizam reflexões em torno dos temas que não suscitaram grandes considerações.

Neste sentido, os comentários mostraram que a discussão em torno da constitucionalidade do estabelecimento de um regime remuneratorio que corroboraria a existência de um status jurídico-constitucional diferenciado para os membros destas instituições, a ser apreciado justamente pelo STF, não repercutiu como esperado.

Diante do exposto, a questão proposta remanesce: o protagonismo judicial, em sua versão remuneratoria, é um fato inconteste?

A discussão é oportuna e pertinente. Analisar as instituições, seu estatuto normativo e suas práticas é fundamental para obter avanços em uma democracia. As ponderações feitas no artigo e os caminhos de pesquisa que estas sugerem mostram que o debate prossegue, neste e noutros fóruns.

Mais uma vez, agradecemos a todos os que criticaram, defenderam e expuseram sua opinião.

 

[1] A necessidade desta ressalva, contudo, sugere ou reforça temas de pesquisa para as mais diversas áreas, dos quais destacamos a impressão dos membros de poder quanto à atividade exercida, relevância e papel social, sem prejuízo das relações travadas entre os representantes das carreiras jurídicas e suas dinâmicas corporativas. E como, sobre todas estas questões, paira o tema da remuneração, símbolo da projeção da atividade sobre um status econômico específico e inserção num estamento social determinado. Sem prejuízo do profícuo campo de análise que a necessidade desta ressalva sugere, optamos por manter a sugestão do texto: o debate, com dados, sobre a validade dos fundamentos da proposta de reforma constitucional em restabelecer os quinquênios.

[2] A inclusão desses dados sugere, ainda, a necessidade de uma reforma tributária, já que o Brasil possui uma tributação direta sobre os salários inferior ao dos países comparados, enquanto sobrecarrega a tributação indireta. Logo, o poder de compra dos mais pobres é muito mais afetado pelo sistema de tributação no Brasil do que nos países europeus analisados.

[3] Esse é um ponto que merece uma análise cuidadosa, pois, observada isoladamente, a decisão do STF não revela qual a frequência nem quais são os grupos que eventualmente se beneficiam ou prejudicam em função das alterações e quais delas são mantidas ou não no Judiciário, provavelmente um campo frutífero para outras pesquisas.

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