Economia e direito são opostos um ao outro?

É bastante comum ouvir no dia-a-dia que os direitos engessam desnecessariamente a economia, ou que a eficiência econômica é um obstáculo à realização de direitos fundamentais. Esse discurso de oposição — só para citar alguns exemplos — permeia boa parte da oposição sindical a reformas no direito do trabalho, além de estar na raiz de discursos libertários contra a regulação da economia. Sindicalistas alegam que qualquer reforma no sistema trabalhista é ruim a priori, por beneficiar o capital, e economistas sustentam que qualquer regulação é ruim por atrapalhar o desenvolvimento econômico. Será mesmo?

O sistema econômico capitalista depende do direito…

Essa oposição entre direito e economia não passa de má-compreensão da história das sociedades contemporâneas. Se seguirmos o discurso libertário de que o Estado é uma instituição desnecessária e que apenas “atrapalha” a eficiência econômica, temos que formular ao menos uma pergunta: existe alguma evidência empírica de que sociedades sem regulação estatal são mais eficientes economicamente?

E a resposta é um estrondoso NÃO! Pode pesquisar: na história inteira da humanidade, não há um único exemplo de sociedade economicamente eficiente sem um governo central. Na pré-história, sociedades de caçadores-coletores produziam/colhiam o necessário para a subsistência, sem qualquer incentivo para grandes melhorias tecnológicas no sistema produtivo. As poucas sociedades sem Estado da atualidade ou são um foco de guerras civis intermináveis (vide vários bandos que ainda existem na África) ou em pleno século XXI ainda vivem como fósseis vivos de sociedades pré-históricas.

Desde o fim da Idade Média, economia e direito se entrelaçaram de tal maneira que um não pode ser compreendido sem o outro. No início da recuperação econômica, nos séculos XIII a XV, as redes comerciais que se formaram na Europa somente se tornaram possíveis graças à regulação jurídica. Ainda sem um Estado central, foi necessário resolver problemas como o câmbio (imagine negociar em uma situação na qual cada cidade tinha sua própria moeda!), segurança nas estradas ou mesmo crédito. Não é por menos que institutos como cheque, bancos, nota promissória e contratos de seguro surgiram nesse contexto.

Embora esses institutos jurídicos tenham surgido a partir da dinâmica dos agentes econômicos, na ausência de um governo central a que poderíamos associar a ideia de um Estado, é inegável que a centralização do poder político possibilitou o maior crescimento da economia. Seria impossível pensar na Revolução Industrial sem um Estado centralizado na Inglaterra que assegurasse o direito de propriedade e expulsasse mão-de-obra do campo (cercamento)  que, mais tarde, seria utilizada nas fábricas das cidades.

Em suma, é impossível ter capitalismo sem direito e sem Estado. O capitalismo somente pode proliferar em circunstâncias sociais nas quais há segurança para realizar transações comerciais. E somente quem pode garantir essa segurança de maneira ampla, a fim de diminuir os custos de transação, é um Estado eficiente.

…mas os direitos também dependem de uma economia funcional

O contraponto à discussão anterior é que os direitos também dependem de uma economia eficiente e funcional. Qualquer direito depende de recursos específicos para florescer. Pense, por exemplo, no direito de propriedade. Como garanti-lo sem recursos financeiros? Manter uma polícia capaz de assegurá-lo, com prisões para quem violar esses direitos, é necessário muito dinheiro.

Ter educação, saúde e direitos trabalhistas e previdenciários também demanda dinheiro. É preciso ter uma economia não estagnada, com fôlego para crescer, para resguardar esses direitos. Uma empresa que não lucra é incapaz de garantir os direitos trabalhistas a seus empregados. Portanto, a regulação do trabalho deve levar isso em consideração, porque o pressuposto dos direitos é que a companhia possa pagar por eles.

Com isso não quero dizer que as pretensões das empresas devem ser satisfeitas a qualquer custo. Apenas é preciso equilibrar as demandas de forma a garantir tanto uma economia funcional, com empresas que lucrem e possam crescer ao longo do tempo, quanto condições de trabalho que sejam mais do satisfatórias. Afinal, empregados mal remunerados são indivíduos que não podem consumir e fazer parte da massa de clientes de uma empresa.

O importante é notar que empresas somente são capazes de lucrar porque o direito institucionalizado garante a ela dezenas de direitos que tornam o exercício de suas atividades possível. Mas, embora o trabalhador tenha direitos assegurados por instituições estatais, a sua implementação depende intrinsecamente do sucesso financeiro do empregador. É preciso acabar com o discurso infantilizante de que os trabalhadores estão de um lado e os empregadores de outro. O discurso é imaturo pros dois lados.

E isso vale para outras discussões não relacionadas aos direitos trabalhistas. É ilusão acreditar, por exemplo, que o sistema previdenciário do servidor público conseguirá garantir os direitos “assegurados” pela Constituição daqui a 40 ou 50 anos. De nada vale o texto constitucional se as condições materiais de sua realização inexistirem. Sufocar a economia para garantir esses direitos é estupidez e irresponsabilidade com as gerações futuras.

Do mesmo modo, educação e saúde dependem de recursos. Muito se tem falado, por exemplo, a respeito de o Brasil aumentar seus gastos com educação em termos percentuais em relação ao PIB. Hoje, gastamos algo em torno de 5% do nosso PIB com o sistema educacional público, e muitos movimentos desejam aumentar esse percentual para 10%.

Ocorre que nenhum país desenvolvido do planeta investe 10% de seu PIB em educação – o que sinaliza a necessidade de implementar melhorias na eficiência do sistema educacional. Mas, se realmente desejamos aumentar o investimento em educação, talvez seja o caso de tornar mais eficiente a economia, retirando amarras burocráticas que, além de inúteis, apenas emperram nosso desenvolvimento econômico (o famoso custo Brasil). Se nosso PIB dobrar, por exemplo, podemos investir os mesmos 5% de hoje e o valor absoluto do investimento em educação dobrará. Não é preciso mais do que matemática básica para perceber isso.

Por tudo isso, me surpreende que direitos sejam uma pauta “da esquerda” e crescimento econômico, uma pauta “da direita”. Ambos os lados são cegos por não enxergarem a relação de implicação mútua e recíproca que existe entre o regime de direitos e a economia. Sem crescimento econômico, não podemos garantir direitos com eficiência; e sem direitos, o crescimento econômico implode.

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  • pablo holmes

    Eu só suspeito que pode haver também direito sem estado. E o problema entre direito e economia é outro. É muito improvável que eles entre em ciclos de acoplamento que produzam crescimento e garantia de direitos. Na história, a maior parte dos exemplos é de um expansionismo (sobretudo da economia, mas que tb pode ser do direito) que destroi outras formas de estruturação de expectativas sociais. Economia destroi o direito quase sempre, e assim socava suas próprias condições de funcionamento.

  • Marco Tura

    Parabéns pela análise que só confirma o que já pensava a seu respeito e a respeito dos demais integrantes do projeto Critica Constitucional.
    Espero que a noticia de suspensão dos trabalhos não se confirme.
    Abraços.

    • Fábio Almeida

      Que notícia de suspensão dos trabalhos? Temos publicado pouco, mas não pararemos nossos trabalhos não!!

  • Marcelo Xavier

    Professor,

    Aprecio seus comentários aqui postados, inclusive quando não concordo com os conteúdos. No caso em questão a reprodução das condições de vida sempre exigiu algum tipo de organização, seja pelo costume, pela tradição etc. A ideia muitas vezes propalada nas cadeiras de graduação de que há uma autonomia do direito em relação economia não passa de um desleixo acadêmico. Como bem colocado por ti, prevalece um condicionamento recíproco entre as duas instâncias, ora sobressaindo uma ou outra.
    No que toca a consecução dos direitos sociais citados (saúde, educação e previdência) é fato que estes respondem, grosso modo, às oscilações do ciclo econômico. Entretanto, as história da economia brasileira evidencia, em diversos momentos, que há uma série de elementos na formação social que obstam tais direitos, tendo como cerne ao meu ver, o patrimonialismo e suas emanações tanto no Direito como na Economia.
    Em termos percentuais de investimento, acho temerário tecer comparações entre países, principalmente com os desenvolvidos. Vale lembrar que o Brasil é uma país subdesenvolvido ( não como a mesma conotação das décadas passadas), porém ainda padece de mazelas “proto-capitalistas”
    Quanto à sustentabilidade do sistema previdenciário, há realmente um conjunto de variáveis que jogam contra o equilíbrio financeiro, sobretudo débitos colossais de grandes empresas e inúmeros perdões camuflados de dívidas. Some-se a isso a gestão temerária feita ao longo de décadas que dilapidaram o sistema enquanto era superavitário. Há de se fazer um ajuste, mas não sobre os beneficiários.

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