Direitos à venda?

Lobby

Em texto publicado aqui no blog com o título “Economia e direito são opostos um ao outro?”, Fábio Almeida defendeu que as relações entre economia e direito são interdependentes, fundamentando sua visão a partir de uma análise histórica no sentido de que uma economia funcional depende de um governo centralizado, com capacidade de regular juridicamente transações comerciais, mas que também a garantia de direitos está essencialmente sujeita à eficiência econômica, sem o que não haveria os recursos necessários à sua efetivação.

Em resumo, a ideia apresentada no artigo é de que a experiência histórica de todas as sociedades  aponta para um necessário entrelaçamento entre economia capitalista e direito, e que por isso a ideia de oposição entre ambos seria inadequada. Logo, seria preciso “acabar com o discurso infantilizante de que os trabalhadores estão de um lado e os empregadores de outro. O discurso é imaturo pros dois lados”.

Como lembra Fábio no início do texto, essa é a oposição que está na raiz dos discursos de sindicatos, de um lado, quando veementemente se posicionam contra reformas na legislação trabalhista que ameacem reduzir direitos; e da corrente libertária, do outro, ao enxergar na atividade estatal de regulação econômica uma intromissão indevida do governo sobre as garantias de liberdade e propriedade, sem as quais o desenvolvimento não floresce.

Embora concorde com a avaliação de que economia e direito mantenham uma íntima relação nas sociedades capitalistas contemporâneas, eu gostaria aqui de levantar alguns problemas do argumento com base em duas considerações.

A primeira delas é de que a avaliação positiva sobre a interdependência entre economia e direito, como fator que desqualifica a oposição entre ambos, está baseada numa suposição equivocada. Ao defender que crescimento econômico está necessariamente no horizonte comum de empresários e trabalhadores, não havendo razões para a compreender essa relação como uma contraposição de interesses, mas como justaposição, o raciocínio não contabiliza dois elementos: 1) a tendência concentradora[1] das novas riquezas geradas por quem detém o capital; 2) a disputa do principal componente do custo de produção do sistema capitalista, o valor da mão-de-obra.

Essa é uma equação complicada, mas uma mirada na estatística divulgada em 2013 pelo Bureau of Labor Statistics (órgão do Ministério do Trabalho nos Estados Unidos), que compara o custo do setor de manufatura (envolvendo salários e encargos sociais) em 33 países é bastante instrutiva nesse sentido. Ela revela, por exemplo, que o custo da hora na Noruega, o primeiro do ranking, é de U$63,36, valor que chega a U$9,46 em Taiwan e U$2,10 nas Filipinas, o último da lista.

Se a história mostra que há uma interdependência entre arranjos econômicos e jurídicos, as transformações do constitucionalismo e a própria ascensão do direito do trabalho indicam que é da oposição dos grupos de interesse divididos entre capital e trabalho, que a  relação entre economia e direito se reflete, e não necessariamente guiadas pela ideia de desenvolvimento.

Por isso, avaliar as disputas envolvendo o custo da mão-de-obra não interessa apenas a patrões e empregados. Caso a nossa atenção se dirija à análise dos padrões da expansão da desnacionalização das indústrias, na segunda metade do século XX, podemos considerar as desproporções entre salários pagos ao redor do globo como elemento fundamental para a tomada de decisões sobre onde, como e quando investir pelas corporações e grupos econômicos mais significativos do mundo. O que produz efeitos sobre definição das taxas de juros, políticas de câmbio, fiscal e orçamentária por parte dos governos.

Sendo a folha de pagamentos o principal item na definição do custo de produção, o aumento dos salários afeta diretamente a produtividade e a expectativa de lucro de quem investe. Então, ao interesse de ambos seria a instituição dos mecanismos de equilíbrio dessa balança como forma de preservar emprego e renda, mas também a continuidade do investimento e produção. Porém, é justamente quando essa relação chega a um ponto de impasse, que o uso seletivo dos instrumentos jurídicos de regulação econômica e do trabalho opera seus efeitos.

Esse é o ponto que me leva à segunda consideração sobre o texto de Fábio. Apresentar como harmônica a ideia de que direito e economia se relacionam sem conflitos é um passo que põe em risco o funcionamento do próprio direito, tornando inevitável que a lógica de expansão econômica atinja em cheio procedimentos e instituições desenvolvidos para assegurar o seu exercício.

Aqui, a observação sobre um fenômeno comum ao Brasil e aos Estados Unidos pode servir como exemplo desse efeito “neutralizador” que a lógica do mercado impõe às instituições: o sistema de financiamento das campanhas eleitorais. No caso brasileiro, o destaque vai para a participação de bancos, empreiteiras e do agronegócio nas eleições para o executivo e o legislativo, já no norte-americano, o fator que me chamou a atenção foi como grupos econômicos passaram a atuar também de modo concentrado nas eleições de juízes.

No Brasil, podemos visualizar como essa relação entre o financiamento das campanhas influencia o debate sobre direitos se observarmos atentamente as discussões (ou a ausência delas) no congresso sobre temas como a reforma política, reforma tributária, o código florestal, trabalho escravo, reforma agrária, direitos de minorias, o marco civil da internet, e tantos outros temas do interesse de todos, cujo potencial de mudança é capturado não só pelo lobby, mas pela atuação de agentes politicos e suas bancadas.

Já entre os norte-americanos, onde o lobby é uma atividade juridicamente regulada, os efeitos da invasão do poder econômico na esfera de decisões políticas é tão forte que supreende. Há lobby de empresas que administram prisões privadas para expandir seus negócios e aumentar as penas dos crimes, de fabricantes de remédios para que o governo aumente os níveis aceitáveis de colesterol, da indústria bélica para que a Suprema Corte mantenha entendimento que dá aos indivíduos o direito ao porte de armas, entre outros. Como disse acima, até a eleição de juízes para as algumas cortes estaduais está sob a intensa mira do business corporativo.

Em vários estados norte-americanos a composição da magistratura é formada em parte por juízes eleitos diretamente[2], ao lado dos outros métodos de ingresso. A partir da constatação do aumento da participação de grupos privados no financiamento de campanhas para juízes, e questionando o impacto desse tipo de financiamento sobre decisões judiciais nos litígios que envolvem interesses comerciais daqueles grupos, a professora Joanna Shepperd (Emory University/Atlanta), coordenou uma interessante pesquisa empírica.

A progressiva influência do dinheiro e a elevação dos custos das campanhas é evidenciada pela comparação dos gastos nos períodos de 1989-1999 (U$83.3 milhões) e 2000-2010 (U$206 milhões). Entre os principais contribuintes das campanhas da última década, estão empresas (30%), advogados e lobistas (28%) e partidos politicos (11%), acompanhados de outros grupos de interesse

Segundo a pesquisa, 90% da demanda judicial envolvendo questões comerciais nos Estados Unidos é julgada pela Cortes estaduais, e 89% dos juízes que integram essas Cortes são nomeados após algum tipo de eleição. O trabalho coletou 2.345 decisões das 50 state supreme courts (órgãos judiciais de última instância dos estados) proferidas entre 2010 e 2012, e cruzou os dados com os registros de 175.000 contribuições de campanha, chegando a conclusões bastante reveladoras sobre o negócio em que se transformaram essas eleições.

O estudo afirma, por exemplo, que dos juízes eleitos que tiveram metade das receitas de suas campanhas através de doações de empresas, há uma expectativa de que decidam a favor de seus interesses em aproximadamente dois terços dos casos. Outra conclusão foi a de que entre os eleitores, o universo de 76% acredita na forte influência das contribuições sobre as decisões, e 90% deles creem que as contribuições são o modo pelo qual as corporações usam as cortes a favor de seus interesses. Em outros termos: uma forma sofisticada e legalmente autorizada de comprar juízes e suas decisões.

O caso Caperton v. A. T. Massey Coal Co. (556 U.S. 868), julgado em 2009 pela Suprema Corte, ilustra um efeito prático dessa relação. Em 1998, Hugh Caperton, ajuizou uma ação de reparação de danos no valor de U$50 milhões contra a produtora de carvão mineral Massey Coal, em função do descumprimento do contrato que teria levado a sua empresa à falência.

No ano de 2004, ainda durante o curso do processo, realizaram-se eleições para magistrados da Suprema Corte de West Virginia, oportunidade em que o executivo-chefe da Massey Coal, após criar uma associação sem fins lucrativos, doou a “módica” quantia de U$3 milhões para a campanha do advogado Brent Benjamin, que se tornou juiz daquela Corte.

Após a recusa da moção de impedimento apresentada por Carpent para julgar o caso, em 2007, o juiz Benjamin apresentou o voto decisivo do caso, o que garantiu o provimento do recurso pela maioria de 3 a 2, negando o pedido de reparação de Carpent.

Na Suprema Corte, o voto do justice Kennedy, condutor da maioria de 5 a 4 que reformou a decisão, destacou que diante da significativa e desproporcional doação feita pelo representante da demandada, seria mais do que razoável que a contribuição influenciasse o resultado da decisão de Benjamin, colocando em xeque sua imparcialidade para julgar o caso.

Claro que ao descrever as relações entre direito e economia o texto aqui criticado não faz a defesa desse tipo de “negócio”, mas todos esses exemplos servem de alerta sobre como a expansão destrutiva da lógica do mercado corporativo pode corroer as estruturas institucionais, inclusive as construídas para garantir transparência política, eficiência econômica e garantia de direitos. Por isso, entender essa relação como uma rede de conflitos ao invés de um entrelaçamento decorrente da justaposição de interesses parace mais produtivo.

 

[1]O cruzamento de dados entre os níveis de crescimento com os de aumento das desigualdades pode representar essa relação. Na China, por exemplo, entre os anos 1980 e 2010, o boom econômico foi acompanhado da disparidade de renda entre ricos e pobres, que quase dobrou, segundo o índice Gini.

[2] Dos 50 estados, 38 deles adotam eleições para juízes, sendo que 21 adotam o sistema partidário. Além dos cargos preenchidos eletivamente, a composição da magistratura ainda é composta pela combinação de critérios de mérito e outras formas de nomeação.

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