Cotas para negros/as e indígenas na Pós-Graduação em Direito da UnB: pluralidade e reinvenções epistemológicas

Pedro Augusto Domingues Miranda Brandão
Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília

 

Por iniciativa dos representantes do corpo discente da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, foi aprovada, por unanimidade, no Colegiado do curso, a proposta de cotas para negros/as e indígenas na seleção de Mestrado e Doutorado da UNB. Trata-se da primeira Pós em Direito a adotar tais critérios.

A proposta foi defendida pela representação do corpo discente do PPGD/UNB e por representantes do Movimento Negro e Indígena da Universidade. Na oportunidade, ficou decidido que uma comissão formada por representantes daqueles movimentos, além de outros estudantes e professores, irá elaborar o edital já para a próxima seleção.

É absolutamente assustadora a ausência de negros/as e indígenas nos espaços de poder no Brasil. Recente censo do Conselho Nacional de Justiça demonstrou, por exemplo, que apenas 1,4% dos juízes/as se declararam pretos/as, 14% pardos/as e 0,1% indígenas. As universidades brasileiras, que poderiam construir outra lógica por serem espaços de produção de conhecimento, também são profundamente marcadas pela segregação racial e étnica.

É perceptível a ausência de negros/as e indígenas na Pós-graduação e no corpo docente das instituições de ensino de nível superior. Apesar de não encontrarmos dados atualizados neste sentido, o Prof. José Jorge, em 1999, apontou que menos de 1% dos professores da UNB eram negros/as, número que se repete em outras universidades brasileiras [1]. São espaços onde a segregação é tão presente quanto nas arenas lotadas dos/as torcedores/as brancos/as nos jogos da copa do mundo.

A adoção pioneira de cotas na Pós da UNB reafirma o protagonismo da Universidade de Brasília, a primeira Universidade Federal do Brasil a aplicar cotas raciais e étnicas na graduação, em tornar o ambiente acadêmico um lugar mais plural e diverso. De acordo com a análise do sistema de cotas para negros da Universidade de Brasília, realizado pelo decanato de ensino, a UNB tinha, em 2012, 41% de estudantes negros/as, o que representa mais que o dobro do período anterior à política de cotas (porém, o dado pode eclipsar as distorções da presença negra e indígena entre os cursos mais concorrido). No entanto, depois de dez anos de aplicação de cotas na Graduação, gerando resultados consideráveis para diminuição da desigualdade étnica e racial, é preciso dar novos passos.

É óbvio, porém, que numa sociedade marcada pela lógica colonial, haverá resistências à implantação da política de cotas. Para além dos argumentos usuais contrários a essa política, no caso da Pós, pode sobreviver um questionamento: se já há política de reserva de vagas na graduação, é necessário para Pós-graduação ?

Primeiramente, é importante destacar que enquanto a política de cotas sociais é implementada para amenizar a profunda desigualdade social em nosso país, a política de cotas raciais é, prioritariamente, instaurada para criar ambientes mais plurais, ou seja, fomentar a diversidade (nesse mesmo sentido, recentemente, o Congresso Nacional aprovou e a presidenta sancionou cotas para negras/os no serviço público federal/lei 12.990/2014). Dito isso, as cotas para a graduação são insuficientes para neutralizar as diversas opressões que se operam na própria dinâmica da graduação e, também, devem orientar uma política acadêmica de formação de professores/as negras/os e indígenas.

No entanto, há uma dimensão esquecida na discussão em relação às cotas, que pretendemos resgatar rapidamente aqui, principalmente, no caso das cotas para Pós, em que há um maior compromisso com a pesquisa e extensão.

Na nossa percepção, outra grande contribuição da política de cotas na Pós-graduação, especialmente para os povos indígenas, é possibilitar a formação de pesquisadores/as alinhados com temas tradicionalmente invisíveis da área jurídica. Os atores sociais envolvidos nas lutas por reconhecimento estarão diretamente envolvidos nas pesquisas jurídicas. De objeto de pesquisa podem passar a sujeitos protagonistas das investigações acadêmicas.

O papel da academia, ao tempo em que ostenta o pretexto oficial de difundir conhecimento, pode atuar muito mais como sufocadora de outros conhecimentos possíveis, valorizando concepções elitistas e coloniais, a partir de imaginários totalizantes, em detrimento de compreensões de mundo historicamente marginalizadas, como o conhecimento popular, a cosmovisão indígena e a cultura negra.

Rita Laura Segato afirma que há um “racismo acadêmico” que impede a permanência e o acesso à academia de estudantes negros e indígenas. Para a autora, a partir de um caso concreto ocorrido na UNB, a diversidade na Universidade pode criar: “una inteligencia capaz de pensar desde otra posición en la historia y en la sociedade, a partir de otra perspectiva”[2]. Possibilitar, portanto, que outros conhecimentos eclodam nesse processo, através da política de cotas, é também, como afirma a jurista mexicana Raquel Sieder: “[...] una critica al saber jurídico dominante monocultural, racista y exclusivo y um compromiso (…) de valorar las epistemologias o lós “saberes distintos” que historicamente han sido negados, discriminados y desvalorizados”[3].

O epistemicídio, noção compartilhada por Boaventura, indica o imenso desperdício das experiências cognitivas e a neutralização ou invisibilização dos conhecimentos produzidos fora de parâmetros dominantes na academia [4]. Dessa maneira, a proposta de cotas é também uma tentativa de superação do epistemicídio, pois tem o objetivo de incentivar a pluralidade e a diversidade na produção acadêmica que permite a proliferação de conhecimentos distintos na academia.

É preciso, permanentemente, inverter a lógica que guia boa parte da academia e questionar não apenas como a Universidade pode contribuir para os povos indígenas e afros, mas como esses povos, seus conhecimentos e suas cosmovisões, podem contribuir para repensar a Universidade e a academia. É necessário, portanto, na linha do que propõe Cesar Baldi, para além de trabalhar com o conceito de “sujeitos de direito”, cogitar o conceito de “sujeitos de conhecimento”, que envolve o processo de ensino e aprendizagem recíprocos entre os diferentes saberes [5].

Dessa forma, é importante ressaltar que as cotas para Pós-Graduação em Direito, além de intensificar o processo de pluralidade e diversidade na Universidade, com a participação de sujeitos antes excluídos desses espaços, funda novas e criativas formas epistêmicas, a partir de setores que historicamente foram alijados da produção/aplicação do Direito, remodelando a própria perspectiva acadêmica a partir desses conhecimentos.

[1] CARVALHO, José Jorge de. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006.

[2] SEGATO, Rita Laura. “Brechas descoloniales para una universidad nuestroamericana”. Revista Casa de las Americas. nº 266, enero-marzo/2012. pp.46.

[3] SIEDER. Rachel. Pueblos indígenas y derecho(s) en América Latina GARAVITO, César Roberto (org.). El Derecho em América Latina. Um mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. 1º ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011. p. 303-323

[4] SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura, MENEZES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. 2ª ed. CES (Conhecimento e instituições). 2010. p. 52.

[5] BALDI, Cesar. Abrindo caminhos à imaginação jurídica. ALICE. [8 de Janeiro de 2014]. Entrevista disponível em:http://alice.ces.uc.pt/news/?p=2985

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